Assim que Juscelino Kubistchek assumiu a Presidência, seu compromisso de criar Brasília, mudando a capital para o interior, tornou-se o principal tema de debate nacional. Toda a mídia e todas as bocas discutiam Brasília, surgindo as mais variadas interpretações do que viria a ser. Algumas vezes figuravam a nova capital como tendo que ser feita no meio da selva selvagem, onde só viviam índios também selvagens. Isso me irritou muito. Eu era um dos poucos intelectuais que tinha vivido para além das fronteiras da civilização, conhecia inclusive a região onde Brasília seria implantada.
Expressei minha reação em um programa, na TV Tupi, em que dizia que Brasília ia ser plantada no cerrado goiano, onde não havia mata nenhuma, acrescentando que, no local, já havia algumas cidades, uma delas fundada em 1720.
Sugeri, naquele programa, que muito mais razoável que a programada capital nova seria retomar as ideias de um século atrás, de ligar com um canal o sistema Tocantis-Araguaia com o sistema Paraná-Paraguai, criando uma nova costa brasileira instalada numa via navegável que iria de Belém a Buenos Aires. Se isso fosse feito desapropriando terras ao longo dessa via para implantar lavradores pobres, o projeto permitiria realmente arrancar os brasileiros que estavam concentrados na praia e lhes dar perspectivas novas de progresso.
Minha ideia chegou a ser discutida. Chegou inclusive aos ouvidos de JK, para quem eu me tornei visível. Tinha já as qualidades de mineiro de uma família do PSD, um tio meu era deputado federal. Muito mais valeu, porém, para Juscelino, minha oposição de intelectual, a Brasília, e minha sugestão alternativa de adotar outras formas de interiorização do Brasil.
Segue-se a esse episódio o concurso internacional para a urbanização de Brasília e a divulgação do plano admirável de Lúcio Costa para a nova capital – um dos mais altos e belos documentos da cultura brasileira. Divulga-se também que a arquitetura de Brasília seria entregue a Oscar Niemeyer, o único gênio brasileiro. Nessas bases é que eu aderi aos planos de JK. Reconheci que a criação de uma cidade-capital, sede de todos os poderes e da cabeça das forças armadas no centro do Brasil, teria o efeito que teve a descoberta do ouro em Minas Gerais. Ataria todas as províncias brasileiras desgarradas por imensas distâncias umas das outras porque em lugar de inclinar-se para o Rio de Janeiro, na costa Atlântica, todos se voltariam para o novo núcleo reitor, que seria a nova capital, situada no centro do Brasil.
Nessa ocasião, eu trabalhava no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, que tinha o encargo de planejar o ensino primário e o médio da nova capital, sob a direção de Anísio Teixeira. Comecei então a arguir sobre a necessidade de criar também uma universidade e sobre a oportunidade extraordinária que ela nos daria de rever a estrutura obsoleta das universidades brasileiras, criando uma universidade capaz de dominar todo o saber humano e de colocá-lo a serviço do desenvolvimento nacional.
Encontrei logo adesões e oposições. Essas últimas partiram de assessores de JK, que queriam a nova capital livre de badernas estudantis, assim como de greves de operários fabris. Foram crescendo, porém, as ondas de apoio, que vinham sobretudo dos grandes cientistas brasileiros, que se juntavam na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
O decisivo, porém, foi alcançar o apoio de Cyro dos Anjos e de Victor Nunes Leal, respectivamente Subchefe e Chefe da Casa Civil. Ambos passaram a falar ao Presidente do imperativo de criar-se uma universidade em Brasília. Conseguiram inclusive que ele, por decreto, me desse o encargo de projetar uma universidade para a nova capital. Eu andava sempre pelo Palácio do Catete, como encarregado que era de colaborar na redação das Mensagens Presidenciais, inclusive de redigir o capítulo da Educação. Nesse trabalho, atribuindo ideias à Presidência da República, é que me aprofundei no estudo dos sistemas educacionais, inclusive das formas de organização das universidades.
Armado com a autoridade que me dava o referido decreto, passei a reunir cientistas, artistas, filósofos para discutir a forma que deveria ter a futura universidade. Terminei por redigir um documento muito divulgado, que englobava uma crítica severa à universidade que tínhamos e a proposição de uma universidade de utopia. Nisso estávamos, quando fui chamado ao Catete para falar com o Presidente. Ele me disse que tinha sido procurado por Dom Hélder Câmara, que lhe comunicara o propósito que tinha a Companhia de Jesus de criar em Brasília uma universidade jesuítica, sem ônus para o Governo, acrescentando que a principal universidade de Washington era uma universidade católica. O Presidente me disse que, entre meu projeto e o jesuítico, ele lavava as mãos. Suspeitei logo que ele já tivesse optado pelo projeto de uma universidade religiosa.
Vivi uma semana de desespero, vendo ruir o sonho da minha universidade de utopia, que era já, então, a ambição maior da intelectualidade brasileira como caminho de renovação do nosso ensino superior e de desenvolvimento da ciência. No meio desse meu desengano, tive a ideia de apelar para os cães de Deus, os dominicanos, que tradicionalmente opunham reservas aos projetos jesuíticos.
Procurei em São Paulo o Geral, no Brasil, da Ordem, que era Frei Mateus Rocha, e lhe expus o meu problema. Argumentei que o Brasil tinha oito universidades católicas, quatro delas pontifícias, que formavam milhares de farmacêuticos e dentistas, mas não formavam nenhum teólogo. Propus entregar aos dominicanos a criação de um Instituto de Teologia Católica dentro da Universidade de Brasília. Seria um ato revolucionário, porque a teologia, expulsa das universidades públicas desde a Revolução Francesa, a elas voltariam, justamente na mais moderna universidade que se estava criando naqueles anos. Houve reações adversas à minha iniciativa, inclusive a de um eminente cientista, que me acusava de trair a tradição laicista da educação.
Frei Mateus foi a Roma procurar o Santo Papa João XXIII, em companhia do Geral dos Dominicanos – o chamado Papa Branco-, e lhe fez a entrega de minha proposta. Soube logo, por telegrama. que o Papa tinha aquiescido. Tempos depois fui receber Frei Mateus, pedindo o documento papal. Ele me disse que o Papa não escreve cartas nem faz promessas. Que toda a Igreja naquele momento sabia que não haveria universidade jesuítica em Brasília, estando aberto espaço para nós.
Enorme foi a surpresa de Juscelino quando lhe contei as minhas demarches. O que se seguiu, porém, foi um ato dele encarregando o Ministro da Educação e um grupo de canastrões, inclusive Pedro Calmon – que era, há dezoito anos, o Reitor da Universidade do Brasil – de programar uma universidade para Brasília. Eu seria uma voz isolada naquela convenção, destinada a perder a parada. Minha reação foi escrever um documento dirigido aos principais cientistas e pensadores brasileiros, comprometendo-os com o projeto que eu havia elaborado e para o qual pediria o apoio da referida Comissão. O certo é que a Comissão acabou por mandar ao Presidente o nosso projeto. Provavelmente porque enorme seria a celeuma se quisessem fazer em Brasília mais uma universidade federal.
A 21 de abril de 1960, Juscelino manda ao Congresso Nacional uma Mensagem pedindo a criação da Universidade de Brasília. Seguiu-se para mim um longo trabalho, primeiro nas Comissões da Câmara dos Deputados, para conseguir a aprovação de uma lei libertária da criação em Brasília de uma universidade inovadora. Nesse trabalho, contei com a colaboração de San Tiago Dantas, que deu forma ao Projeto de Lei, instituindo a universidade como uma organização não-governamental, livre e autônoma, de caráter experimental e dotada de imensos recursos para constituir-se e para funcionar.
Adveio o breve governo de Jânio Quadros, que me confirma por Decreto na qualidade de coordenador de planejamento da Universidade de Brasília. Em seu governo, adiantamos muito na fixação do terreno onde ficaria o campus da Universidade, entre a Asa Norte e o Lago. Contribuiu poderosamente para isso o plano urbanístico da Universidade, proposto por Lúcio Costa.
Nessa quadra, vendo que a universidade era inevitável, Israel Pinheiro lhe concedeu um vasto terreno, seis quilômetros distante da capital. O propósito era afastar a agitação estudantil do centro de poder da capital. Aceitei a doação, destinando-a a criar ali um centro agrícola de estudo de uma tecnologia para o cerrado.
No dia da renúncia de Jânio Quadros, passei no Gabinete da Presidência e senti ali um ambiente de incontrolável tensão. Mas ninguém me adiantou nada. O Secretário do Presidente, José Aparecido de Oliveira, sugeriu que eu fosse para a Câmara. Lá, só lá, soube da renúncia. No meio de uma Câmara perplexa, porque havia acabado de aceitar a renúncia como um ato unilateral, que não cumpria discutir, mas apenas tomar conhecimento. A sessão estava por encerrar-se, o que ninguém queria.
Acerquei-me então do Presidente da Mesa, Deputado Sérgio Magalhães, e lhe pedi que pusesse em discussão o projeto de criação da Universidade de Brasília, que era o número dezoito da Ordem do Dia. Ele reagiu instantaneamente, tratando-me de louco. Mas instantaneamente percebeu que, ali, o único homem de juízo era eu. Mandou que eu descesse a Plenário para conseguir que um líder propusesse a mudança da Ordem do Dia. Quando eu ainda tentava convencer o Deputado Josué de Castro a fazê-lo, o Presidente Sérgio Magalhães anunciou que, tendo sido aprovado o requerimento do líder do PTB, punha em discussão e mandava ler o projeto de criação da Universidade de Brasília. O que se seguiu foi o tumulto de uma Câmara que demorou alguns minutos a perceber do que se tratava, que era fazê-los exercer suas funções, discutindo uma lei de suprema importância. ~ debates foram acalorados entre a UDN, como sempre contrária aos projetos do Governo, e os outros partidos, com o pendor de aprová-lo. O mais veemente discurso contrário foi o do velho Raul Pilla, ponderando que, se nossos pais e avós mandavam seus filhos estudarem em Coimbra, bem poderia o povo de Brasília mandar os seus para as antigas universidades, sem incorrer no risco de criar aventureiramente uma universidade em uma cidade apenas nascente. Na votação, o projeto da Universidade de Brasília foi aprovado com grande margem favorável.
Comecei meu trabalho então junto ao Senado, que aquiescia verbalmente às minhas proposições, mas não parecia disposto a aprovar o projeto. Procurei então o Primeiro-Ministro, Hermes de Lima, pedindo conselhos. Ele me disse que tinha uma boa solução, mas estava certo de que eu não a acolheria: era procurar o líder Filinto Müller, pedindo que ele conduzisse o debate da Universidade no Senado. Horrorizei-me. Tratava-se de aproximar dois extremos simbólicos – o meu de esquerdista e o de Filinto Müller, direitista.
Procurei o Senador Filinto Müller e pedi o seu apoio. Ele convidou-me para um chá em sua casa, onde comemos os excelentes bolos que sua senhora fazia. Mal ouviu parte da exposição que eu queria fazer, justificando a organização da nova universidade, ele disse-me:
– Não se inquiete, professor. O problema agora é meu. Breve eu lhe farei saber quando será a discussão final em plenário.
Efetivamente, pouco tempo depois ele me chama, me faz sentar numa cadeira lateral para ouvir os debates sobre o projeto de criação da nova universidade. Eu os ouvia atentíssimo, sobretudo o Senador Mem de Sá, que num longo discurso argumentava que, sendo o Professor Darcy Ribeiro sabidamente um intelectual inteligente e competente; sendo também inegavelmente um homem coerente; e sendo, para arrematar, um reconhecido comunista, fiel ao marxismo, a universidade que propunha só podia ser uma universidade comunista. Como tal, inaceitável para o Senado. Seguiu-se a votação e o projeto da universidade foi aprovado por imensa maioria. Eu tinha em mãos, pois, toda uma lei admirável que deveria por em execução.
Minha primeira providência foi discutir com Anísio Teixeira se o Reitor deveria ser ele, que nesse caso teria de mudar-se para Brasília, ou se seria eu. Anísio, em sua generosidade, aceitou o cargo de meu Vice-reitor, o que comuniquei a Hermes Lima e assim saiu o Decreto do Presidente João Goulart que me fazia fundador e primeiro Reitor da Universidade de Brasília.
Os meses e anos seguintes foram os da alegria de dar nascimento à Universidade de Brasília, transfigurando a ideia em coisa concreta. Dela tive de afastar-me, primeiro para ser Ministro da Educação e depois para ser Chefe da Casa Civil. Anísio assumiu a Reitoria fazendo Frei Mateus Rocha, que levava adiante com todo entusiasmo a edificação do Instituto de Teologia Católica, o seu Vice-Reitor.
Graças às funções que eu exercia na máquina do Estado, pude ajudar muito a Universidade. Por exemplo, na sua edificação, no equipamento de seus laboratórios e conseguindo residências para os professores que começavam a chegar às dezenas. Assim a Universidade foi crescendo e desdobrando suas potencialidades, até que o golpe militar que se abateu sobre o Brasil, regressivo e repressivo, caiu sobre ela com toda a fúria.
Darcy Ribeiro / abril, 1995.
*Este texto foi publicado na Revista Carta, falas, reflexões, memórias – Informe de distribuição restrita do Senador Darcy Ribeiro. No seu volume 14, esta publicação temática dedicou-se à Invenção da Universidade de Brasília, tendo em vista a atribuição do título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Brasília a Darcy Ribeiro, em março de 1995. Este texto constitui o prólogo da Carta no. 14