O Brasil vinha se construindo, confiante como nunca em sua capacidade de transformar-se para superar o atraso e acabar com a pobreza, quando sobreveio o golpe militar de abril de 1964. O que se queria era alargar os quadros sociais, para que mais brasileiros tivessem empregos em que progredissem por seu esforço, para que todos comessem todos os dias, para que cada criança tivesse oportunidade de completar seu curso primário. Vale dizer, aquilo que é progresso e modernidade para nações civilizadas. Tudo dentro da democracia e da lei.
O golpe militar de 1964 foi uma irrupção ab-rupta do fluxo histórico brasileiro, que reverteu seu sentido natural, com feitos indeléveis sobre a soberania e a economia nacional e também sobre a cidadania, a sociedade e a cultura brasileiras. Vínhamos, há décadas, construindo, a duras penas, uma nação autônoma, moderna, socialmente responsável e respeitosa da ordem civil, quando sobreveio o golpe e a reversão.
O Brasil atual é fruto e produto da ditadura militar, que armou-se de todos os poderes para conformar a realidade brasileira segundo diretrizes opostas às até então vigentes.
Jango e seu governo
Quando Jango assumiu a presidência da República, a conjuntura mundial era polarizada por duas fortes presenças: John Kennedy, no governo dos Estados Unidos, aparentemente disposto a apoiar alternativas democráticas à revolução cubana, e João XXIII, mobilizando a Igreja Católica para a responsabilidade social e para a opção pelos pobres.
Mudaram-se os tempos e as vontades. João XXIII morre. Kennedy é assassinado. Já nos funerais do Papa, Jango percebeu que Kennedy não se sentia animado a apoiar reformas na América Latina, com medo de sua própria direita. Foi nesta atmosfera cambiante que se definiu e se combateu pelas reformas de base, principalmente a Reforma Agrária, atrasada por um século, e a de controle do capital estrangeiro, notoriamente incapaz, se deixado solto, de gerar aqui uma prosperidade generalizável aos brasileiros.
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Jango articulava a aprovação pelo Parlamento de sua fórmula de Reforma Agrária, proposta na Mensagem Presidencial de 15 de março de 1964. Esta consistia em introduzir na Constituição o princípio de que a ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade. Princípio do qual decorria a norma de uso lícito da terra, que seria o equivalente a quatro vezes a área efetivamente utilizada.
Essa reforma devolveria ao controle do Estado centenas de milhões de hectares de terra, sobretudo no Brasil Central e na Amazônia, apropriados abusivamente através de chicanas e grilagens por grandes latifundiários, com objetivo especulativo. Por essa via legal é que o Presidente pretendia dar terras, em pequenos lotes, a 10 milhões de famílias, da mesma forma que a lei americana fizera, em 1860, distribuindo aos pioneiros o seu Oeste e criando o mercado interno, que foi o fundamento da prosperidade daquela nação. Jango sempre dizia que com milhões de proprietários, mais famílias iriam comer, viver e progredir, mais gente se fixaria no campo, a propriedade estaria mais defendida e o capitalismo consolidado. Nada mais oposto, como se vê, ao comunismo.
Como era de se esperar, essas duas reformas estruturais – que estavam não só formuladas criteriosamente, mas em marcha para a concretização – uniram carnalmente toda a direita contra o governo, dissolvendo suas distensões internas. Inclusive a oposição recíproca dos dois maiores partidos patronais: a UDN e o PSD, que viviam no desespero de verem o PTB crescer a cada eleição, de forma que sua vitória, na futura eleição presidencial, era não só previsível, mas inevitável.
Dois Brasis se defrontavam ali. Numa vertente, estava o Brasil das Reformas de Base, empenhado em abrir perspectiva para uma nova era, fundada numa prosperidade oriunda da ativação da economia rural e da mobilização da economia urbana, ampliada através das outras reformas em marcha: a urbana, a fiscal, a educacional e a administrativa. Na vertente oposta, estava o Brasil da reação, em união sagrada para a conspiração e o golpe, sem qualquer escrúpulo, a fim de manter a velha ordem.
O golpe
O golpe militar teve como finalidade, basicamente, impedir estas duas reformas. Para isso é que mobilizou os latifundiários, em razão dos seus interesses; e os políticos da UDN e do PSD, que vinham minguando ano a ano.
Apesar de poderosas, estas forças retrógradas não podiam, por si mesmas, derrubar o governo. Apelaram, então, para o capital estrangeiro e seu defensor no mundo, que é o governo norte-americano, entregue à estratégia da guerra fria. Os conspiradores de 1964 não só aceitaram, mas solicitaram a intervenção estrangeira no Brasil, rompendo nossa tradição histórica de defesa ciosa da autonomia e de repulsa a qualquer ingerência em nossa autodeterminação.
Assim é que se pôs em marcha a operação de desmonte do governo constitucional brasileiro, através de um golpe urdido na embaixada norte-americana, orientada pelo Departamento de Estado e coordenada pelo adido militar, que atou as ações golpistas dos governadores de Minas, do Rio e de São Paulo e as articulou com a conspiração subversiva dos oficiais udenistas das Forças Armadas, que maquinavam desde 1945 contra a democracia brasileira.
As ações operativas de criação de um ambiente propício ao golpe foram entregues à CIA, que recebeu para isso dezenas de milhões de dólares, competentemente utilizados na mobilização de toda a mídia para uma campanha sistemática de incompatibilização da opinião pública com o governo – definido como perigosamente
comunista – seguida da promoção de grandes marchas pseudorreligiosas de defesa da democracia e das liberdades. Ambas tiveram profunda repercussão nas classes médias, sempre suscetíveis a manipulação, mas não afetaram o apoio popular ao governo reformista.
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“O golpe foi todo um êxito, proclamado como a maior vitória do Ocidente contra o comunismo, maior que o desarmamento nuclear de Cuba, maior que a queda do muro de Berlim”, disse orgulhoso o embaixador Gordon.
Jango não caiu por ocasionais defeitos de seu governo. Foi derrubado em razão de suas altas qualidades, como o responsável pelo maior esforço que se fez entre nós para passar o Brasil a limpo, criando aqui uma sociedade mais livre e mais justa.
Trint’anos cruéis
Passados 30 anos, podemos avaliar historicamente o que representou para o Brasil o golpe e os governos militares que ele implantou.
No plano da soberania, desde a Independência o Brasil agia como nação orgulhosa de sua autonomia e ciumenta de sua autodeterminação, repelindo qualquer interferência política estrangeira. No plano econômico, ao longo de todo um século, nossa economia crescera ao ritmo anual de 4,4% do PIB. Fato extraordinário, a nível mundial, que nos situava entre os países que mais prosperavam. No plano político, conhecendo embora regimes arbitrários, nunca tivéramos uma ditadura militar de estilo hispano-americano. No plano social, o povo, suas lideranças e uma parte das elites participavam ativamente da vida política e da mobilização para as reformas de base, otimistas quanto ao futuro do Brasil.
O golpe representou uma reversão nesse quadro, como um ato de inspiração e condução estrangeiras. Especificamente norte-americana, conforme demonstrou exaustivamente a documentação a ele concernente, publicada pelo Jornal do Brasil, que descreve com detalhes como o golpe foi planejado, executado e apoiado a partir da Embaixada, orientada por Washington.
Vinte anos de exercício arbitrário do poder por governos compostos de generais ingênuos, manipulados por tecnocratas sabidíssimos e por políticos reacionários, interromperam nosso processo de autoedificação. Isso ocorre justamente quando nos
capacitávamos para conduzi-lo racionalmente e de forma planejada, no sentido de abrir ao Brasil uma era de desenvolvimento sustentado. Isso é o que faria o governo deposto, dentro de uma democracia participativa, através de uma reforma agrária que incorporaria milhões de famílias à economia e à cidadania, e da execução de uma lei, já promulgada, que obrigaria o capital estrangeiro aqui investido a atuar de forma solidária com o capital nacional
O objetivo real, inexplícito mas demonstrável, do golpe militar – aliás, plenamente alcançado – foi afastar essas ameaças para preservar os interesses do latifúndio e das empresas multinacionais, a fim de perpetuar uma ordem social retrógrada e uma economia dependente e socialmente irresponsável das quais nos esforçávamos, há décadas, para escapar.
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O valor mais alto que perdemos debaixo da ditadura foi o sentimento coparticipado de que o Brasil é um país especial, com destino próprio e singular, a ser alcançado por nosso esforço. Com efeito, a ditadura quebrou em muitos brasileiros o próprio orgulho de patriotas, confiantes e otimistas quanto ao futuro do Brasil. Acanalhou o sentido de honra e de respeito aos bens públicos, generalizando a corrupção até nas cúpulas dos órgão supremos do poder. Temo, mesmo, que ela tenha quebrado na juventude de classe média o nervo ético e o sentimento cívico, levando enorme parcela dela ao desbunde e à apatia, dissuadida de qualquer participação política. Perderam-se, assim, para a vida cívica, aqueles que, aqui, ontem, se queimavam pela construção, no Brasil, de uma civilização mais bela e de uma sociedade mais justa.
Uma geração de estadistas, identificados com o povo brasileiro, deixou de ser formada, abrindo espaço para os negocistas. Tamanho foram os danos da ditadura que só nos resta a esperança de urna reversão radical, que devolva aos brasileiros a ousadia de tudo repensar para reinventar o Brasil que queremos.
Estamos ainda sob os efeitos nefastos desta ditadura, cuja erradicação é a principal tarefa política dos brasileiros. Tarefa enormemente dificultada pela conivência dos políticos e dos negocistas, solidários com a ordem privatista instituída pela ditadura, dispostos a jogar todo o seu poderio econômico no suborno do eleitorado das eleições de outubro próximo, com o objetivo de perpetuar seus privilégios.
17 de julho de 1996