Berta Gleiser

Na verdade das coisas, eu me apaixonara por uma menina comunista que tinha uma história heroica. Conheci Berta num comício, quando pedi um cigarro a um companheiro que sustentava a outra vara da faixa que abríamos. Ela veio trazer. Nunca mais me deixou. Soube depois o segredo dos mistérios dela, complicadíssima para namorar. Ela era a irmã menor que ficara escondida no Brasil quando Jenny, a mais velha, jovem ativista, foi banida junto com Olga Benário, a mulher de Prestes, para ser mandada para um campo de concentração na Alemanha. Olga cumpriu seu destino e foi morta lá. Jenny escapou porque portuários franceses, advertidos de sua presença no navio, a tiraram de lá.

Berta, sendo bela e doce, e tendo essa história, me apaixonou. Danado que sou, quis mantê-la com outras duas namoradinhas que tinha, uma baiana belíssima, Vilvanita, e uma paulista judia, Rosa. Berta um dia juntou nós quatro numa festinha e me disse, escandindo as palavras: “Escolha quem você quer. A mim não vai me enganar”.

Escolhi e começou o meu primeiro namoro sério, com muita interferência, porque o Partidão zelava por ela e não confiava em mim. Acabou levando-a para o Rio. Foi trabalhar na comissão de quadros do Comitê Central, que classificava os comunistas, os militantes, fiscalizava contra infiltrações policiais e trotskistas. Eu tive que, outra vez, andar de trem para namorar.

Ela começou sua carreira de etnóloga de campo acompanhando-me por seis meses na pesquisa que realizei junto aos índios Kadiwéu do pantanal mato-grossense. Lembro-me bem de Berta menina, chegando dos Estados Unidos, onde vivera uma temporada, para casar-se comigo. Dias depois de deixar Nova York, montou pela primeira vez num cavalo para andar dez léguas. No meio da viagem, tive que arranjar uma carroça para levá-la. Eu já tinha estado uma temporada com aqueles índios, que se surpreenderam demais de me ver voltar casado, principalmente as índias, que tinham esperanças de reter-me lá.

Ali ela deu dois passos remarcáveis. Colaborou de forma assinalável comigo como auxiliar de pesquisa e teve sua primeira formação como etnóloga capacitada para observação direta. Nos anos seguintes, Berta aprofundou seus estudos me ajudando a elaborar os materiais colhidos na redação de meus livros sobre a arte, a religião e a mitologia dos Kadiwéu. Nesses mesmos anos, concluiu seus estudos acadêmicos, graduando-se em história na faculdade de filosofia, que posteriormente se integrou à UERJ.

Em 1953, começou a trabalhar no Museu Nacional, na qualidade de estagiária. Fixou-se, então, no estudo da cultura material dos povos indígenas do Brasil e no tratamento e na conservação das coleções museográficas dos mesmos. Ela é o único caso de antropólogo de sua geração com um interesse vívido pela cultura material e pelas formas de adaptação ecológica dos povos indígenas. Publicou vários trabalhos nesse campo, a começar por um estudo da arte plumária em colaboração comigo – Arte plumária kaapor, premiado, aliás, pela Academia Brasileira de Letras.

Estendeu esses estudos, posteriormente, à classificação de todos os adornos plumários do Brasil. A partir de 1958, mudou-se para Brasília, onde colaborou comigo e com Eduardo Galvão no planejamento e na implantação do departamento de antropologia da Universidade de Brasília. Mais tarde, foi comigo para o exílio no Uruguai, onde se dedicou à elaboração do conceito de transfiguração étnica que apresento no meu livro Os índios e a civilização.

De volta ao Brasil, em 1968, Berta retornou ao Museu Nacional, primeiro como pesquisadora independente, depois como naturalista contratada. Ali, mais uma vez, ela se destacou entre os antropólogos da casa por seu renovado interesse pela cultura material do ponto de vista tecnológico, ergológico, funcional e artístico. Passa a ver e a permitir que todos vejamos como, nas coisas que fazem, os índios se expressam, seja individualmente, imprimindo sua caligrafia pessoal em cada artefato, seja grupalmente, dando a toda sua artesania uma identidade étnica inconfundível.

Berta alcançou o clímax de sua carreira, nesse sentido, ao fazer a sua tese de doutorado sobre os trançados, tema extraordinariamente complexo, que ela denomina A civilização da palha. Graças a seu estudo, temos hoje uma tipologia e uma taxionomia desses artefatos, diferenciados em estilos culturais e modos de adaptação ecológica, bem como valorizados por sua significação simbólica e iconográfica.

Berta coroou esses estudos taxionômicos com uma obra fundamental da antropologia brasileira, que é seu Dicionário do artesanato indígena. Ele constitui hoje o principal instrumento de trabalho dos antropólogos e museólogos que lidam com as culturas indígenas. Essa obra representa, como classificação no campo da etnografia da cultura material indígena, o que a obra biobibliográfica de Baldus representa para a etnologia brasileira. Já então, Berta alcançara renome internacional como etnóloga de museus, como pesquisadora de campo e como elaboradora teórica dos estudos mais avançados com que contamos no campo da ergologia.

A contribuição de Berta foi também fundamental na edição brasileira do Handbook of South American indians, em 1987, de que publicamos, nós dois, três alentados volumes, sob a designação de Suma etnológica brasileira, com a colaboração de uma dezena de antropólogos. Realizou pesquisas de campo próprias entre os índios Yawalapiti e Kayabi, do Parque Indígena do Xingu, e junto aos índios Desana e Baniwa do alto rio Negro, sobre os quais escreveu monografias valiosas. A principal delas, Os índios das águas pretas, publicada pela Companhia das Letras, é um modelo de estudo antropológico profundo e compreensivo.

É de ressaltar aqui algumas qualidades específicas de Berta. Primeiro, seu simultâneo interesse pelas culturas indígenas e pelo destino dos índios. Segundo, seu respeito por seus informantes indígenas, que chega ao ponto de publicar um livro de mitologia em nome deles e lhes transferir os direitos autorais. Terceiro, sua ampla visão, que incorpora tudo que conhecemos sobre a sabedoria dos povos da floresta dentro do quadro da sociedade e da cultura brasileira, tema sobre o qual publicou vários livros. Inclusive seu texto “O índio na cultura brasileira”, que é o melhor com que contamos para uma visão panorâmica da contribuição indígena à nossa cultura.

Outra obra de Berta muito divulgada é seu catálogo para a grande exposição que realizou sobre a floresta amazônica e os riscos que pesam sobre ela e sobre seus povos. Essa exposição foi montada em muitas cidades brasileiras e estrangeiras com o nome de Amazônia urgente e constitui o maior esforço que se fez para visualizar a história e o drama da floresta e dos índios da Amazônia.

Sua última obra, Índios do Brasil: 500 anos de resistência, que ela vem elaborando há dez anos, será publicada proximamente pela Universidade de Brasília. É uma proposição de enorme amplitude, mas detalhadíssima, de como deve ser o Memorial dos Povos Indígenas de Brasília como repositório de suas criações e como expressão da vontade de perfeição e de beleza que os inspira.

Temo que seja obra póstuma. O diabo do câncer atingiu a ela e a mim. A Berta na cabeça, na área da fala e da memória, que é inoperável, porque haveria o risco de convertê-la num vegetal. Nosso fundo entendimento de coração se deu, uma vez mais, quando percebi que Berta tinha horror de ser enterrada no cemitério judeu do Rio de Janeiro. Nunca tendo sido judia ativa, porque era essencialmente uma brasileira comunista, viver no outro mundo junto de estranhos a horrorizava. Conversando, ela encantou-se com a ideia de ser cremada. Eu organizei tudo e ela ainda assinou os papéis competentes.

Então, eu dizia a ela nas minhas visitas, que tratasse de morrer logo, para poder ser bem cremada. Resistindo ao câncer como resistia, podia morrer depois de mim, o que seria uma lástima, porque ninguém a cremaria direito. O certo, porém, é que desde há muitos anos convivemos com muito amor. Depois de 25 anos de casamento, e mais 25 de separação, confluímos numa convivência pacata e amorosa. Gosto de dizer que a estou namorando e dou beijos na boca. Também a peço em casamento. Ela aquiesce, mas, quando ainda falava, dizia a suas amigas: “Para casamento, Darcy não é confiável”.

Este texto constitui uma seção do livro Confissões de Darcy Ribeiro, publicado postumamente.