BRASIL: A INDIANIDADE ORIGINAL

O Brasil é um país tão surpreendente que tudo aqui é coetâneo. Neste sentido, se pode dizer que nós não temos eras, nem idades. Tudo aqui ocorre simultaneamente. Vejam só: quem quer que viaje pelo interior do país, se viaja muito, acaba encontrando com um mundo igualzinho àquele com que se deparou Cabral. Lá está, no fundo das matas, o indiozinho pelado com a mesma inocência e na mesma desproteção com que o primeiro indígena viu o primeiro europeu que chegava. Para aquele índio, a nossa expansão representa uma ameaça tão mortal e tão fatal como o foi a invasão portuguesa para os que estavam na costa em 1500 e que desapareceram sob a avalanche chamada civilização.

O Brasil tem muito que ver com os índios. Afinal, nós viemos deles. Não só os sucedemos no mesmo território, mas nos construímos sobre os seus corpos, uma vez que a população brasileira é, em grande parte, oriunda da mestiçagem de uns poucos europeus com muitas mulheres indígenas. Os índios é que não têm nada a ver conosco. Eles estão é na raiz da aventura humana. Eles são, de fato, remanescentes da humanidade original. Daquela humanidade anterior à experiência mais dramática por que passaram os homens, a grande desventura que foi a estratificação da sociedade em classes sociais opostas e interdependentes de senhores e escravos, de patrões e empregados, ou de ricos e pobres.

Antes da existência das classes, toda a humanidade vivia uma vida solidária, igualitária, dentro de comunidades devotadas exclusivamente ao provimento da sua própria subsistência e à reprodução das suas formas tradicionais de vida. Ninguém explorava nem oprimia ninguém. A vida era farta e alegre.

As populações indígenas mais isoladas do Brasil, ainda hoje, são mostras destes modos humanos originais de existência, anteriores às classes. Ali não há diferença entre gente da cidade e gente do campo, porque não há cidades. Também não há diferença entre senhores e escravos ou patrões e empregados, porque não há escravos nem senhores. Toda gente vive solidariamente, e trabalha segundo um ritmo que permite, de algum modo, tanto prover a subsistência do grupo todo quanto realizar as potencialidades de cada pessoa.

Outra característica da indianidade original, expressa na vida das aldeias chamadas primitivas, é que lá não há nenhuma separação entre uma cultura erudita e uma cultura vulgar. Isto é, entre a cultura dos intelectuais, transmitida de forma escrita, e que dá lugar a artistas especializados, como os grandes escritores, os grandes compositores; e a cultura vulgar, folclórica, transmitida oralmente, e que dá lugar aos cantos populares e à criatividade geralmente chamada vulgar. O que há é uma só cultura singela, mas homogênea, com base na qual eles provêm a subsistência, organizam o convívio comunitário, explicam suas experiências e exprimem sua vontade e beleza.

À primeira vista, entre os índios tudo seria equivalente à nossa cultura chamada vulgar. Na realidade, não é bem assim. Cada índio é muito mais capaz de apreciar o virtuosismo de qualquer membro da sua tribo do que qualquer um de nós é capaz de julgar um artista nosso. As técnicas que eles dominam são mais elementares, às vezes muito rudimentares mesmo, mas todos conhecem satisfatoriamente estas técnicas. Na cerâmica, por exemplo, não há ninguém que não saiba que a melhor ceramista da aldeia é fulana, e ela se orgulha muito disto. Mas todas as mulheres conhecem a técnica da cerâmica e fazem, uma vez por outra, um vaso ou um pote. A mesma coisa ocorre com os arcos ou as flechas, ou com qualquer outro artefato. O pouco saber existente sendo coparticipado não se presta a ser monopolizado nem para humilhar ninguém.

O mais importante, porém, é que lá as pessoas se imprimem nas coisas que fazem de uma forma tão característica como nós nos exprimimos pela caligrafia. Olhando a carta de um amigo ou de um parente, a gente sabe perfeitamente que foi ele que escreveu, porque sua personalidade está inscrita na caligrafia. O índio, olhando um arco ou uma flecha, é capaz de reconhecer quem fez aquele arco, quem fez aquela flecha, quem trançou aquele cesto ou quem modelou aquela peça de cerâmica. Isso porque lá as pessoas se imprimem também caligraficamente nas coisas que fazem. E como as coisas estão ali a denunciar quem as fez, cada um coloca muito mais vontade de perfeição nas coisas que faz do que seria necessário para que elas cumprissem seu fim útil. É orgulho de cada pessoa fazer as coisas com perfeição.

Por isso, andando nas aldeias, se pode ver cestos, reles cestos de carregar mandioca, ou simples panelas de cozinhar qualquer coisa, que são muito mais perfeitas do que seria necessário para cumprir seu fim utilitário. É que estes objetos não se destinam à mercantilização, não são mercadorias destinadas a serem vendidas e usadas por pessoas longínquas e desconhecidas. São, ao contrário, objetos personalizados, que estão a dizer, a denunciar, na sua forma, que fulana é muito zelosa ou muito desleixada, ou que fulano é um bom fabricante de flechas ou um relaxado.

Nestas condições, apesar de não contarem com técnicas muito avançadas nem com grandes artistas, os índios gozam muito mais da arte como expressão de uma vontade ativa e acessível de beleza do que nós, porque lá todos se expressam esteticamente no esforço diário de fazer ou de usar as coisas mais simples. Um corpo pintado de urucum para uma tarde de festa. é uma obra de arte feita com o zelo com que um pintor pinta uma tela. E pouca tela terá sido tão louvada no nosso mundo, como um corpo primorosamente pintado é julgado e apreciado numa aldeia.

Entre nós, quem é herdeiro da música erudita ou da pintura erudita que só podem ser ouvidas e vistas em ocasiões muito especiais e que só podem ser apreciadas por pessoas especialmente treinadas? Os índios não têm nada disso; mas cada um deles tem o gosto de se expressar musicalmente de vez em quanto; e todos exercem sua parca capacidade pictórica ou simplesmente criativa em cada coisa que fazem, tirando mais gozo tanto do trabalho como do convívio social e da criatividade cultural e artística.

Por isso é que numa visita a qualquer aldeia isolada se encontram objetos de beleza tal que encantam cada visitante. É impossível deixar de ver a perfeição formal de uma panela, de uma peneira, de uma casa ou de um colar. Uma perfeição perfeitamente inútil, se poderia dizer. Mas a beleza é precisamente isso, é esta perfeição perfeitamente inútil que esquenta o coração e dá alegria.

Na vida indígena, o que se vê nas coisas mais simples é esta alegria de viver, esta vontade de beleza expressa de mil modos, por gente comum, que tem um contentamento que entre nós só é dado ao artista criador ou ao apreciador mais sofisticado das nossas altas artes inacessíveis ao homem comum. Lá, a criatividade está generalizada. Seria impossível ocorrer, por exemplo, numa aldeia qualquer, a situação de uma datilógrafa que passe os dias a bater à máquina um texto com que ela não tem nenhuma identificação senão como trabalho, um texto que outro escreveu e ela nem compreende. Lá, nenhum tecelão teceria um tecido segundo um padrão que outro desenhou. Isso não poderia ocorrer nunca ali. Lá, ninguém põe suor, ninguém põe esforço na tarefa insensata de reproduzir mil vezes, milhões de vezes, uma garrafa de Coca-Cola precisamente igual a todas as outras, sem nenhuma possibilidade de reinventá-la. Entre nós, o operário que reivindicasse seu direito à criatividade, pareceria um insensato. É uma loucura, diriam. É até um perigo que se pretenda fazer isso, desorganizaria toda a vida, acabariam com a civilização. Talvez sim; mas talvez também devolvesse ao homem a alegria de viver que nos falta cada vez mais.

A nossa capacidade de tudo estandardizar na produção industrial levou a esta situação em que já não há como ninguém se expressar no trabalho, personalizando as coisas para satisfação de quem as faz e também de quem as usa. Na vida indígena, ao contrário, apesar da sua aparente singeleza, se guardam valores culturais e morais que se tornaram inatingíveis para nós, por mais civilizados que sejamos ou queiramos parecer. Assim é que perdemos valores muito importantes substituídos por práticas utilitárias. Eles, entretanto, são insubstituíveis. Não porque sejam mais lucrativos para alguém, nem mais produtivos para ninguém, mas simplesmente porque fariam a vida mais grata e mais amável para todos. Entretanto, para falar a verdade, quem é que, entre nós, se importa realmente com a alegria de viver do simples trabalhador, do homem comum, da mulher, da criançada?

Na condição da indianidade original, onde ela por acaso sobreviva, em algumas aldeias perdidas no meio da floresta, ali e só ali, talvez, sobrevive esta vontade de beleza que está na raiz de todos nós e de que todos nós carecemos. Com a fartura e a igualdade da vida comunitária em que ninguém explora ninguém, perdemos também esta simples e elementar alegria de viver, sem a qual nenhuma existência humana vale a pena.

Esta é uma fome de que todos os homens participam. Ela é que se expressa, às vezes, nas utopias sobre o futuro, que são na realidade incitações não de retornar ao passado, mas de recuperar, no futuro, aquele exercício de vontade de beleza, aquela capacidade de cultivar a perfeição, que devolvam aos homens uma alegria de viver que se está murchando cada vez mais nas nossas grandes cidades supercivilizadas.

A principal lição da vida indígena é este exercício singelo, por toda a gente, de simples alegria de viver, de fazer, de comer, de beber, de dormir, de amar, que todo o mundo, lá, tem e sente. Quer dizer, aquela capacidade de viver a vida e de fazer as coisas com uma originalidade e uma espontaneidade que emprestam à existência uma beleza e uma dignidade que, para nós, parecem estar totalmente perdidas.

Por que isto nos sucedeu? Qual é a causa desta perda desastrosa? Trata-se, talvez, de defeitos e de culpas oriundos de nossa própria tradição histórica, tão oposta à indígena. Com efeito, o invasor europeu, que colonizou as Américas em nome da civilização, vinha armado tanto de uma ferocidade social terrível, predisposta a perseguir e escravizar a todos, como de um obscurantismo cultural que induzia a ver em todo o gozo uma possibilidade de pecado e de perdição eterna.

O índio, ao contrário, concebe o corpo como uma dádiva do criador, que lhe foi dada para que, com ele, possa ver, ouvir e gozar a glória de viver. Por isso é que os heróis dos mitos indígenas, seus deuses, quando vêm ao mundo, vêm para participar da vida do seu povo. Vêm para as alegrias do exercício do corpo, para rever as cores, para cheirar os cheiros, para sentir os gostos. Vêm para usar as mãos fazendo obras perfeitas, que deem gozo a quem as faça, a quem as veja, a quem as toque.

Brasil: a indianidade original é a seção central do texto Brasil: terra dos índios, composto de três partes, que integra, junto com outros ensaios de Darcy Ribeiro, o livro Utopia Brasil.  Isa Ferraz selecionou e organizou este conjunto de textos de Darcy Ribeiro, publicado pela Editora Hedra, São Paulo, em 2008.