Brasília, hoje de junho, 96. Vera, naveguei a noite toda pelos mares bravios da memória. Quase morri. Ondas grossas me arrastaram nas areias do fundo do mar. Ondas leves, espumosas, me alcançaram às alturas do céu.
Vivi, outra vez, vividos meus dissabores maiores: exílios, prisões, dores. Eles dariam para arrasar qualquer coração capaz de infelicidades. Mas revivi também, gozoso, meus prazeres e alegrias.
Nesta navegação celeste e abissal, um traço grosso, horizontal, cortava todas as ondas. Era você. Verusca. Você menina. Você menina feita. Você mulher. Você madura. Você agora. Sempre a meu lado, mão na minha mão. Às vezes, raras vezes, boca na boca, não mais. Pobre de nós. Coitadinho de mim.
A primeira imagem me devolve Verinha em uniforme de colégio, entre seus irmãos. Sobretudo no bonde cheio de meninas, aflita para me saudar com a mão, apesar dos pitos da freira. Ainda naqueles tempos está você, quase zarolha de ciúme me vendo cortejar sua irmã que nos veio, paulista, com seu chapelão de palha.
As ondas me levaram vida a fora. Angustiado, querendo suicidar, afoito, escrevendo romances. Pretensioso, filosofando. Depois, fui exportado para São Paulo. Fui ser baiano no meio de tantos gringos. Lá me refizeram todo. Sobretudo a alma, que deu de querer cientificidades antropológicas. Nesta quadra você me vem já moça, seiúda, discretamente bunduda, mas sem coragem de si mesma, me dá mão fugidia para retirar logo, discreta.
Viro antropólogo. Antes ainda de virar vejo você, invejoso, dando prum italiano. Assim ao menos me pareceu. Falava alto, fumava exibida e era linda e perigosa. Mandava no ministro bestão, que só tinha olhos para sua cantora e ouvidos pros barrocos antigos.
Você, entendidíssima dessas dissonâncias, mal me vê. Mas de esguelha, me deixava saber que eu existia, veemente, para você.
As ondas nos rolaram para Brasília nascente. Você era funcionária letra O, candelária. Eu brigava contra Deus e o mundo para fazer a Universidade dos meus sonhos, você olhava e ajudava, sempre me vendo, me destacando entre os homens todos como o não-irmão, queridíssimo, sem saber porquê.
nasce a UnB de nossas mãos, querendo ser esplêndida, de um esplendor que só nós víamos. Nós dois e Rosa Maria. Logo se juntou gente em multidão pedindo carona em nosso sonho.
Lembra-se de meu desespero pedindo socorro a você para reger meus loucos? sobretudo os matemáticos, que não são desse mundo. Precisavam urgentemente, de um timoneiro que os fizesse baixar o chão do mundo. Veio você, pôs o barco sob as ondas navegando. Um dia teve que salvar um deles que decidira se suicidar porque a mulher o proibira de foder com uma arquiteta que ele experimentara e disse a ela que era muito melhor que ela. Sei que você se lembra. Eu, desembargado de minha nau reitora, fui ser ministro da Educação, você comigo, no Gabinete, ordenando em arroubos para arrancar leite daquela burocracia vadia. Deu mais leito do que sabia.
Voltei com você à Universidade e logo fui chamado à minha aventura maior: passar o Brasil a limpo. Não vi você. Não via ninguém, só conduzia a barcaça enorme do destino nacional, atônito, lúcido de doer.
Soube de você, Verinha minha, carregada de filhos que não pariu mas queria como leoa a suas crias. Fui me embora para a anti-Passárgada, meu primeiro exílio. Você ficou aqui namorando os exilados.
Mais tarde foi me ver, me consolar de meus fracassos, que eu repetiria outra vez e sempre na luta maior para que o Brasil afinal dê certo.
A dor que mais me doeu nos primeiros anos de exílio foi ver a nossa Universidade de Brasília ser desmontada pela ditadura. Foi saber dos 240 professores que levei para lá, na diáspora mais dolorosa da história brasileira, terem que sair à procura de outra Universidade que os quisesse, porque sua dignidade não permitia permanecerem na Universidade humilhada. Tudo isso acompanhei por suas cartas, lembro-me que, no desespero em que estava, cheguei a escrever uma carta, que mandei a você me colocando à disposição dos carrascos para voltar preso ao Brasil se aceitassem esse preço para deixar livre nossa UnB. Desvarios meus.
Volto à Patrinha quando os meninos marchavam no Rio. Achava que se eles ofereciam seus jovens corações à bala, eu devia oferecer ao menos meu fígado, porque já não tinha coração. Vivemos tempos tempestuosos. Jogados daqui pra lá como casquinha de toletes de cana chupados. Fui preso. Recebi suas cartas doídas de não estar lá presa, comigo, na Fortaleza de Santa Cruz. Parto para meu segundo exílio pela porta que você me abriu, com Berta, obrigando Abgar a forçar jeitoso a ditadura para me deixar sair. Lá fui eu, para além dos Andes, para o mar grosso do outro lado do mundo, para Lima la horrible, onde nunca chove jamais, mas cai cada mês em estado, menstrua.
Tão forte é a maresia que transcende. Você lá foi ter comigo, viu Lima arcaica e Lima nova, até fez um boneco na praia com a espuma do Pacífico, grosso como a neve.
Segui meus descaminhos, agora romancista, li para você os primeiros escritos de “Maíra”. Berta nos olhava sempre suspeitosa. Tanta amizade parecia inverossímil, e era.
Rodei mundo e em Paris topei, tropecei com meu destino: câncer. Voltei ao Peru pedindo passagem para o Brasil. O câncer era meu cavalo. Pensava: com ele voltara à Pátria, mal montado é verdade, mas posto entre os meus. Meus amigos todos se juntaram, você no meio deles para que a ditadura consentisse que eu voltasse para morrer no Brasil. Custaram a consentir, achavam que mesmo canceroso eu era um perito, por fim, autorizaram quando meu câncer já ameaçava ficar inoperável.
Você lá estava com Mirza no carro do chefe de polícia para me arrancar do avião para a Beneficência. Pedi, você se lembra? Pedi para ver a praia de Copacabana alargada e iluminada.
Fui, vi, feliz. Depois fui morrer no hospital.
Mas não era isso que eu queria. Jessy me arrancou fora um pulmão excedente. Fiquei com o que necessitava para aspirar os ares do mundo e expirar a morte que se aninhava no meu peito.
Você Verusca, lá estava me trazendo flores e frutas. No hospital, para os polícias, você era minha irmã, com direito a estar que não davam a meus amigos.
Para Berta não, você disputava com ela o doente dela, marido dela, futuro morto dela de que só ela seria a viúva.
Feias brigas vocês brigaram ali à beira da minha cama. Mas eu precisava de vocês duas. Brigavam tanto a ponto de assustar mamãe na casa do Max para onde fui convalescer.
Voltei depois às andanças por casas alheias e depois, afinal, para minha casa de Copacabana, a casa de Berta. Minha querida Berta que lá está hoje, morrendo de seu câncer.
Eu mal podia andar, a cicatriz ainda visível eu mostrava a meus sobrinhos, filhos do Mário, dizendo que era uma mordida de tubarão. Eles acreditavam. Vivi tão cercado de polícias que me incomodava mais que a convalescência. Diziam que estavam me protegendo contra os terroristas da própria ditadura. Mirza achava verossímil.
Tive de aceitar, obrigado, meu terceiro exílio e as novas tarefas de reformador de universidade e de namorador. Retorno ao Brasil para lançar o “O Processo Civilizatório” e depois lançar Maíra. Você a meu lado orgulhosa de mim que era seu e dos livros que também eram seus. E não eram?
Retornando, por fim definitivamente, me meti outra vez na política, para seu desconsolo. Me elegi vice-governador.
Criei o Sambódromo e muitas coisas mais. Entre elas meus 500 Cieps, cuja agonia nas mãos do novo governo me dói tanto quanto a da UnB. Você, orgulhosa de mim, mais orgulhosa agora, do que preocupada.
Alcanço a idade provecta e viro, como é próprio, Senador da República. Venho pra Brasília e você me dá casa. Primeiro um apartamento alçado no telhado alto, belo, belo. Depois, na esplêndida casa zanínica em que morei.
Tomando café de manhã, almoçando e jantando com você e passando a limpo, em longas conversas, toda a nossa vida, nos perguntando sobre tudo o que há neste mundo.
Ainda temos muito que nos ver, nos olhar, nos beijar, nos falar. Verusca, minha amada namorada. Me dói muita saudade de nós.