Sociedade alguma pode ser feliz, pessoa alguma pode se sentir confortada e feliz enquanto perambulam pelas ruas crianças abandonadas, já muitas à margem de tudo, sem futuro, sem amanhã e sem destino.
Leonel Brizola
Centro Integrado de Educação Pública – CIEP: Falas ao professor[1]
Quem não sabe ler hoje em dia, é quase um cego. Nas cidades, nem pode andar pelas ruas, sem perguntar a toda hora onde está e como pode ir de um lugar a outro. No trabalho, então, o analfabetismo é um atraso de vida. Não saber contar é igualmente uma desgraça, seja para fazer contas nas compras e vendas, seja para conferir o salário e para mil coisas mais.
Assim é porque nossa civilização funciona supondo que todos sabem ler, escrever e contar, o que converte o analfabeto num marginal. Ocorre, entretanto, que, em nosso país, quase metade da população é praticamente analfabeta; no máximo desenha o nome, sendo incapaz de ler uma notícia ou de escrever um bilhete. Mais grave, ainda, é o fato de que estamos formando novas massas de analfabetos adultos, dada a ineficiência espantosa de nossas escolas. É inegável que, com nossa conduta educacional irresponsável de hoje, estamos condenando imensas multidões a viverem marginalmente amanhã, sem participar da civilização muito mais complexa, a que deverá pertencer.
Esse é não só o sintoma maior de nosso atraso cultural, mas também a expressão mais dolorosa da desigualdade social de nosso país. Um índio, apesar de iletrado, é um homem completo. Sabe perfeitamente falar, prover a subsistência de sua família, contar e inventar histórias e fazer muita coisa mais, como casas, adornos etc. Aprende tudo isto de oitiva, porque é de uma civilização oral, cujo saber se transmite pela fala e pelo exemplo. Um lavrador analfabeto pode – ou podia – exercer seu ofício e viver sua vida, fazendo-se respeitar como um trabalhador competente e até como um homem inteligente, sem saber ler nem escrever. Hoje, mesmo na roça, a vida do analfabeto é difícil. Até os índios, agora, querem e precisam aprender a ler e a contar, para coexistir conosco numa sociedade de cultura letrada.
É de assinalar que muitos países menos desenvolvidos econômica e socialmente que o nosso, têm taxas muito mais altas de alfabetização. Por quê? Com efeito, é de indagar por que razão, nós, que fomos capazes de construir a beleza do teatro de Manaus, por exemplo, ou a indústria de São Paulo, ou a arquitetura de Brasília, fracassamos na tarefa muito mais simples de ensinar toda criança a ler, escrever e contar? Na verdade, a quase totalidade das nossas crianças vai à escola e lá fica estudando três até quatro anos. Mas, metade delas saem analfabetas. Como não vão viver vida de índio, nem de lavrador antigo, nosso sistema educacional os está formando, de fato, para uma existência miserável e penosa, sem possibilidade de progresso pessoal. E arrastando, em consequência, todo o nosso povo ao atraso, como é inevitável em um país com grande massa de analfabetos.
Há muitas explicações para o fracasso brasileiro. Algumas ingênuas, dos que esperam o socialismo para nos dar a alfabetização. Lembrar que, sem socialismo, a maioria dos países conseguiu resolver muito bem o problema de criar uma escola pública honesta e eficiente. A raiz desse fracasso está, de fato, é numa perversão da nossa sociedade, enferma de desigualdade. Perversão provavelmente oriunda do fato de que fomos o último país do mundo a acabar com a escravidão. Uma classe dominante feita de descendentes de senhores de escravos – afeitos a gastar gente como se fosse um carvão humano, com total descaso pelos que trabalhavam para eles – tende a continuar olhando o povo com o mesmo desprezo. A única solução possível para esse gravíssimo problema social e nacional é melhorar a qualidade das escolas que temos; é ajudar o professorado a realizar com mais eficácia a sua tarefa educativa; é socorrer as crianças para que frequentem as escolas, mas lá aprendam; é, ainda, chamar de volta às aulas os jovens insuficientemente instruídos para lhes dar, pelo menos, um domínio da leitura, da escrita e do cálculo que os salve da marginalidade.
Centro Integrado de Educação Pública: Educação como Prioridade[2]
Criar no Brasil a escola que todo o mundo desenvolvido oferece as suas crianças deixou de ser um sonho, para tornar-se esperança e expectativa do povo brasileiro. A criação no Rio de Janeiro dos Centros Integrados de Educação Pública — os CIEPs — do Governador Leonel Brizola é o acontecimento mais importante da história da Educação, da Cultura e da Saúde no Brasil. O CIEP, escola onde a criança é plenamente assistida em períodos de oito horas diárias, faz da educação meta prioritária do governo do Estado do Rio de Janeiro, que assume responsabilidade concreta com respeito ao ensino básico, concentrando esforços numa ação social transformadora da maior importância econômica, cultural e política.
Seu significado maior é o de oferecer, pela primeira vez, uma solução real ao problema da criança das classes populares, cuja família — não-escolarizada ou inserida no mercado de trabalho periférico e incerto — é obrigada a deixar os filhos em situação de precário atendimento familiar ou mesmo de abandono. Sobretudo nas áreas adjacentes aos grandes centros metropolitanos, é absolutamente necessária a construção de grandes escolas ou de escolas-parque, onde os alunos tenham uma convivência educativa que inclua, além das aulas normais, o acompanhamento de atividades pedagógicas nas Salas de Estudo Dirigido, práticas higiênicas formativas, como o banho diário, atendimento médico e odontológico preventivo e curativo, material didático que favoreça um desenvolvimento intelectual nas mesmas condições das crianças de outras classes sociais e também quatro alimentações diárias. Condições que atendam aos direitos básicos primordiais de toda criança, cuidando assim para que cada uma delas não seja mais uma criança brasileira a se tornar um menor abandonado.
No Estado do Rio de Janeiro, a implantação do Programa Especial de Educação, retomado com o 2º Governo Brizola, significa a compreensão de que a escola pública diz respeito à maior parte da população e é o elemento imprescindível para integrar as populações carentes e marginalizadas na civilização urbana contemporânea, habilitando-as ao exercício da cidadania.
Nos CIEPs, promove-se uma educação integral, incorporando em sua prática pedagógica a consciência de que saúde é um direito e que cultura é inerente ao ser humano.
A transição da cultura arcaica a cultura letrada faz-se sem qualquer elitismo, valorizando a herança cultural popular brasileira, mas instrumentalizando as novas gerações a expressar-se também através do domínio das formas eruditas. Para isso, os CIEPs contam com dois elementos de importância crucial. Por um lado, a ação dos animadores culturais, como elos de comunicação da escola com a comunidade; e, por outro, o acesso da comunidade a biblioteca escolar, alcançando assim a formação intelectual mais ampla que a leitura e a consequente reflexão ensejam.
Fazendo do tripé Educação — Cultura — Saúde a base de sua atuação, o CIEP assume-se enquanto escola integrada à vida da comunidade, trabalhando pela conquista de melhores condições de vida e desenvolvimento para a infância brasileira. Na busca de um cotidiano escolar que preserve o tempo de ser criança, impedindo que se produza forçadamente o adulto precoce, nos CIEPs são oferecidos às crianças: Estudo Dirigido em salas em condições ideais para aprofundamento ou reforço de estudos sob orientação de professores, além daquele de sua turma; frequência ao Laboratório de Informática Educativa; programas de informação e recreação adequados a cada idade, através da teledifusão educativa; atividades culturais, criativas e lúdicas, com os Animadores Culturais; alimentações diárias, balanceadas, sob supervisão de nutricionistas; práticas de Educação Física e recreação, além de estímulo e possibilidade de recrutamento para práticas desportiva; assistência médica, preventiva e curativa, atendimento odontológico, e práticas diárias, orientadas de higiene; regime escolar de progressão contínua, assegurando a cada aluno acesso anual à série seguinte, pois a aprendizagem é um processo permanente; sistema conjunto de avaliação das escolas, professores e demais envolvidos no processo escolar, de forma democrática e coletiva.
O CIEP inaugurou uma nova etapa na história da educação de base em nosso país: aquela em que os direitos das crianças começaram a ser efetivamente respeitados, capaz de mobilizar para a aprendizagem o potencial dos alunos. Em contraste com as escolas superlotadas, o CIEP proporciona a seus alunos múltiplas atividades, complementando o trabalho nas salas de aula com recreações, esportes e atividades culturais. Como uma escola com essas características é fato de implantação recente, é preciso estabelecer um processo de formação coletiva de todas as pessoas envolvidas no processo (alunos, professores, diretores, funcionários e a própria comunidade) para que percebam as perspectivas mais amplas da nova proposta educacional.
Ao invés de escamotear a dura realidade em que vive a maioria de seus alunos, provenientes dos segmentos sociais mais pobres, o CIEP compromete-se com ela, para poder transformá-la. Acreditando ser inviável educar crianças desnutridas, o CIEP supre as necessidades alimentares dos seus alunos. Considerando que a maioria dos pais de alunos não tem recursos financeiros, são fornecidos gratuitamente os uniformes e o material escolar necessário. Reconhecendo que grande parte dos alunos está exposta a doenças infecciosas, com problemas dentários ou deficiência visual ou auditiva, proporciona a todos eles assistência médica e odontológica. Paternalismo? Não: política realista, exercida por quem não deseja ver a educação das classes populares reduzida à mera falácia.
As ações pedagógicas no CIEP emanam de uma visão interdisciplinar, de modo que o trabalho de cada professor integre, complemente e reforce o trabalho dos demais. Nesta perspectiva, os funcionários são convocados a participar do processo educativo. A educação não compete mais somente aos profissionais da área, ela transcende a escola, deve ganhar as ruas. Quanto mais a proposta educacional for includente e reivindicar participação de pessoal não-especializado, mais se favorecerá a conscientização do sentido da educação.
O atual momento histórico aumenta a participação comunitária nas principais instituições da sociedade, assim pretende-se que o diretor do CIEP lidere um processo vivo e participante de trabalho na escola e na comunidade. Que o professor de classe passe a atuar de forma comprometida e entusiasmada. Que o professor orientador não seja um simples técnico, mas uma força estimuladora da melhoria do ensino. Que a cozinheira não seja apenas a pessoa que prepara comida, ou que inspetores e funcionários não sejam aqueles que reprimam e vigiem, varram ou espanem seguindo rotinas inteiramente desvinculadas da ação educacional, mas se tornem colaboradores do processo educativo. Por isso todos participam de um treinamento que começa intensivo e complementa-se por um treinamento em serviço, em reuniões que estimulam a constante troca de ideias e vivências.
Um elemento fundamental da proposta pedagógica do CIEP é o respeito ao universo cultural dos alunos. As crianças pobres sabem e fazem muitas coisas que garantem a sua sobrevivência, mas, por si sós, não têm condições de aprender o que necessitam para participar da sociedade letrada. A tarefa primordial, portanto, é introduzir a criança no domínio do código culto, mas valorizando a vivência e a bagagem de cada uma delas. A escola deve servir de ponte entre os conhecimentos práticos já adquiridos pelo aluno e o conhecimento formal exigido pela civilização contemporânea.
Partindo da realidade concreta dos alunos, os professores motivam todos a falar e a participar, a contar suas experiências pessoais e comunicar seu pensamento. É essencial que todos se sintam prestigiados. Normalmente a criança pobre consegue se comunicar e se relacionar com facilidade em seu próprio meio social, mas, na escola, não se sente muito à vontade. O professor que tem respostas prontas para tudo, que obriga os alunos a ouvir calados suas lições, que corta o raciocínio da criança cada vez que ela “fala errado”, só pode contribuir para inibir e bloquear sua capacidade de pensar.
Conscientes desses fatores, os professores dos CIEPs empenham-se em promover a autoconfiança dos alunos, para que eles sintam vontade real de aprender cada vez mais. Respeitando as linguagens regionais e a fala coloquial, estimulando as crianças a compreender e a questionar a realidade que as cerca, os professores, num projeto integrado, podem desenvolver uma ação educativa que ultrapasse os muros da escola.
Um adendo importante: na dinâmica dessa escola de tempo integral, o recreio e as brincadeiras são considerados essenciais ao processo de ensino/aprendizagem. E existe sempre uma hora em que cada aluno se torna dono absoluto de seu tempo, para fazer o que achar melhor dentro do espaço escolar.
[1] Este é o texto introdutório de Falas ao Professor, fascículo distribuído a todos os professores dos CIEPs, desde sua publicação em 1985, durante I PEE. Foi republicado em Educação como prioridade, Editora Global, 2018, coletânea de textos de Darcy Ribeiro, com seleção e organização de Lúcia Velloso Maurício.
[2] Texto publicado na Carta 5, dezembro de 1992, momento em que se retomava o programa dos CIEPs, através do II PEE).