Darcy, Berta e a  Amazônia

José Ribamar Bessa Freire

Darcy Ribeiro não teve a morte gloriosa que queria: aos 90 anos, com um tiro no peito, disparado por um marido traído, como manifestara, brincando. Morreu aos 74 anos, sem poder escolher a arma, vítima de outra traição.

Darcy escreveu os seus “Diários Índios” em 1949, “como uma carta a minha mulher, Berta, que era minha amada”. Mas só os publicou, como livro, no ano passado, quando deu informações, no prefácio que redigiu, sobre o calibre do disparo que o acertou, a ele e a Berta: 

“Então, no tempo deste diário, éramos jovens ou apenas maduros. Envelhecemos depois, uma pena. Saltamos já a barreira dos setenta. Ao fim, fomos atingidos por dois tiros: o câncer. Estamos ambos lutando, cada qual contra o seu. O de Berta a pegou na cabeça, justamente na área da fala. Não pôde ser extirpado, porque ela perderia a memória e o ser. Viraria um vegetal em coma perpétuo. Mas aguenta bem. Voltamos até a namorar, depois de vinte anos de separação. Eu a beijo na boca e prometo casar de novo com ela”.

Tive a satisfação de conhecê-los no exílio, quando não haviam completado ainda 50 anos. No final de 1969, Darcy passou sozinho por Santiago do Chile. Queria uma entrevista com Salvador Allende, presidente do Senado e candidato a presidente da República. Thiago de Melo, amigo dos dois, intermediou o convite para um almoço na casa do próprio Allende. Peguei carona naquele encontro entre “cachorros grandes”.

Depois, já no Peru, trabalhei num projeto da Reforma Educativa do governo Velasco Alvarado, inspirado por Darcy Ribeiro. A partir daí, convivi um pouco mais de perto, sobretudo com Berta, que agora continua a mesma luta travada por Darcy contra o câncer.

Darcy nos deixou, mas combateu o bom combate até o fim. Saiu pro pau com o câncer, desfazendo aquele clima de tragédia com que esta doença costuma envolver suas vítimas, humilhando-as, como bem observou o jornalista Zuenir Ventura:

Com um estoicismo cheio de humor, ele dessolenizou o câncer, tirou-lhe aquela gravidade homicida, brincou com ele, gozou-o, debochou e de certa maneira desmoralizou-o. Passou a mão na bunda do câncer, como ele diria. Depois de Darcy, o câncer não será o mesmo, não terá a mesma arrogância”.

A AMAZÔNIA

Darcy e Berta, juntos ou individualmente, nos legaram uma obra vital para a compreensão da Amazônia. Ele, mais exuberante, com maior penetração na mídia, acabou ficando mais conhecido. Nos “Diários Índios”, ele pede ao leitor não estranhar “a quantidade de palavras que você talvez desconheça, porque são do vocabulário que descreve a floresta amazônica. Isso é muito bom, porque você irá aprendendo a ser amazônida também”.

Mineiro de nascimento, o próprio Darcy aprendeu com os índios – e nos ensinou – os mistérios da Amazônia.  Sua última intervenção no Senado foi justamente a elaboração do “Projeto Caboclo” para a ocupação da região. Preocupado com os estudos e simulações em computador que apontam o prazo final da destruição da floresta amazônica até o ano 2.050, caso sejam mantidas as condições atuais de exploração, Darcy propõe como alternativa o uso da sabedoria indígena milenar

Ele constata que foram os índios que “deram à nossa civilização a fórmula de sobrevivência nos trópicos. Nos transmitiram inventos adaptativos que desenvolveram em milhares de anos e que se cristalizaram nas formas de caça, de pesca e, sobretudo, de lavoura. Eles cultivavam, habitualmente, em suas roças, umas quarenta plantas que são até hoje o sustento básico de nosso povo, como é o caso da mandioca, do milho, do amendoim, dos feijões e de muitas outras plantas”.

O “Projeto Caboclo”, baseado no conhecimento que se tem sobre as formas tradicionais de vida de comunidades amazônicas, pretende desenvolver experimentos que possam servir para comprovar que é possível a ocupação permanente e ecologicamente equilibrada da Amazônia.

A contribuição de Berta Ribeiro, menos badalada, é, no entanto, de extrema importância e até mesmo mais significativa para algumas áreas. Berta, como uma formiguinha, reuniu os conhecimentos mais avançados existentes sobre a floresta tropical e organizou a exposição “Amazônia Urgente – Cinco séculos de História e Ecologia”, que recebeu o Prêmio Nacional de Ecologia de 1989.

Neste mesmo ano, publicou, em belíssima edição bilíngue, o seu “Arte Indígena, Linguagem Visual”, onde mostra como toda atividade indígena está impregnada de senso estético, exemplificando com a produção artística de muitos grupos da Amazônia.

Produziu ainda o “Dicionário do Artesanato Indígena”, muito útil para os pesquisadores, porque oferece informações práticas necessárias para o manejo e o estudo dos objetos encontrados nas aldeias e recolhidos aos museus.

A região do alto Rio Negro foi visitada várias vezes e estudada com especial carinho por Berta Ribeiro. Ela reconheceu a importância da preservação da mitologia Dessana e, junto com o padre Casemiro Beksta, organizou a sua publicação, apresentando-nos dois intelectuais indígenas: Firmiano e Luiz Gomes Lana.

Ela é ainda autora, entre outros trabalhos, de “Diário do Xingu”, “Artes Indígenas da Amazônia”, “O índio na cultura brasileira” e um sem-número de artigos publicados em revistas especializadas, além de organizadora de outros tantos, cabendo destacar os três volumes da “Suma Etnológica”.

Neste momento em que o Brasil inteiro cultua, com razão, a memória do professor Darcy Ribeiro, não seria demais uma homenagem à sua parceira de tantas viagens pelo mundo do conhecimento e da vida. Ela continua, com seu jeito de ser, resistindo.

Publicado pela primeira vez em 27 de fevereiro de 1997, na coluna semanal Taquiprati, de José Ribamar Bessa Freire, no jornal A Crítica de Umberto Calderaro, em Manaus. Republicado no site Taquiprati, desenvolvido por José Ribamar Bessa Freire a partir do ano 2000.