Darcy Ribeiro e o  AI-5

Quando aqui cheguei (ao Brasil), sabia que uma das possibilidades era a prisão. Mas estava convencido de que estando aqui na cadeia ajudo mais do que no exílio. Esta é também, agora, a minha convicção, apesar de todos os meus amigos, ou quase todos, pensarem o contrário. Acham que eu estou desgastando minha postura. Estão perplexos com a ideia de que, tendo possibilidade de ir para a França, prefira estar aqui nestas condições.

Minha prisão ameaçada há muito tempo se cumpriu hoje. Esperei-a há muito tempo, ordenada por alguma autoridade capaz de enfrentar o Supremo ou pela auditoria militar. Saiu agora, por quê? Suponho que o discurso de Marcito[2] tenha exasperado demais os militares. Temia que o governo tomasse alguma providência. Que tenho com isso? É provável que eles tenham um esquema mais amplo de repressão.

Para me ouvir veio o coronel Humberto Moura Cortez, mas neguei-me a depor. Redargui que não aceitaria ordem nesse sentido, porque era ilegal. Mas disse que estava sempre à disposição para conversar. A essa altura ele me deu para ler o Al5. Esperou, indagando com um olhar arguitivo. Não há dúvida de que os militares estão armados de novos poderes de ação arbitrária. Só comentei que, com um poder desses, eles podiam atender aos reclamos do povo brasileiro, mas duvidava que o fizessem.

Por que voltou? (perguntou o Coronel)

Tendo o STF anulado as condenações militares que pesavam sobre mim, voltei para defender-me em liberdade das acusações de quaisquer outros processos que me tenham aberto. (respondeu Darcy)

Reiteramos ambos (Darcy e Mirza, seu advogado), diante do coronel, minha disposição de depor, mas de fazê-lo dentro da mais estrita legalidade. Aquilo a que nos negávamos era aceitar uma prisão retrospectiva,  só para interrogatório.

O coronel manifestou sua perplexidade diante do absurdo de que eu, que teria exercido o poder sem resolver os problemas do país e criado uma situação caótica que tornara inevitável a revolução, pretendesse pôr a culpa em Castelo Branco. Eu declarei que não se tratava disso e perguntei se ele subscreveria o Al-5, editado ontem. Diante de sua resposta positiva, disse: Enormes são suas responsabilidades. Os senhores chamam a si poderes imensos, inclusive o poder de editar leis. Se usarem, agora, esse poder com os chamados revolucionários, que o utilizaram até agora, será uma farsa clamorosa. A História não perdoará.  Era a hora de encará-lo. Levantei-me, falamos ainda uns minutos de pé e, à minha saída, o coronel, mais uma vez, apicaçado pelo meu desafio de utilizar os poderes do Al-5, não apenas para perseguir e reprimir ou fazer remendos, disse: ‘Isso é o que vamos fazer agora’.

Berta veio ontem e me deu uma visão mais clara do que ocorre lá fora. Devem ser milhares os presos, inclusive intelectuais e alguns políticos mais proeminentes. Isso significa que o ato não foi só editado, mas também cumprido em toda a extensão. Não se trata de um poder posto em mãos do governo (387), mas de um regime novo implantado no país. A meu juízo, é a maior burrada que poderiam fazer. Violentando-se ainda mais, agravam a animosidade que já despertavam, escandalizam o mundo… e para quê? Para nada!  

A conversa foi penosa. De concreto só apurei que decretaram minha prisão preventiva e dos demais implicados no processo. Como não há mais habeas-corpus, isso significa que ficarei trancado até o julgamento e depois dele.

Argumentei que ele não era procurador do governo, mas da República e, se tinha algum compromisso com a Justiça, o que deveria fazer era me dar uma chance de sair de um processo absurdo, cujo resultado ele, em sã consciência, bem sabia que seria a condenação. […]

Concordamos que o problema não era jurídico, mas político. Eu disse então que voltara ao Brasil com base na decisão do STF, que anulara as condenações militares que pesavam sobre mim, na convicção de que aqui poderia defender-me em liberdade. Não sendo mais essas as circunstâncias, porque se criara uma nova Justiça autárquica para problemas de segurança, minhas alternativas seriam a prisão, por vários anos talvez, dependendo da continuidade do regime, ou sair do país, aceitando um dos convites que me foram feitos.

Voltando depois a falar de minha “periculosidade”, ressaltei que o terror deles eram os intelectuais capazes de pensar o Brasil com independência. Que eu aceitava ser incluído entre eles, mas que a culpa de um fracasso do governo não era nossa, mas deles, de sua inépcia para formular um projeto próprio. Desafiei-os, assim: Se vocês com Castelo Branco à frente do governo nada fizeram, tendo o máximo poder de legislar, até sobre matéria constitucional, e contando com o apoio da classe dominante, dos políticos e de amplos setores da classe média, não será agora, diante da oposição unânime da nação e da sociedade civil, que farão qualquer coisa. E muito improvável. E frisei: Os senhores se arrogaram novos poderes, ilimitados, simplesmente para fazer calar a oposição e para permanecer no governo sem dar contas a ninguém. Não são capazes, porém, de fazer nada com o poder que detêm, seja para afirmar a autonomia nacional contra a exploração estrangeira, seja para realizar uma política de reformas que abra ao Brasil perspectivas de elevação do padrão de vida do povo. Texto postado em dezembro de 2023, quando o AI-5 completou 55 anos.


[1] Extratos de texto publicados em Confissões na seção Prisão do capítulo Primeiro Exílio.

[2] Marcio Moreira Alves, na época, deputado federal, fez discurso que serviu como argumento para a publicação do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional.