Darcy Ribeiro, Homem de Ideias 1996: O Intelectual

Antônio Candido

Não há dúvida de que Darcy Ribeiro é, certamente, um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve em todos os tempos. Isso não é uma afirmação exagerada, não é uma sentença comemorativa. É a verificação de tudo que ele é, pelo que fez, pelo que pretende fazer e, sobretudo, pela sua concepção geral das coisas que faz.

O caso especial de Darcy é que, além de ser um intelectual de muita eminência, um intelectual que construiu uma obra de antropólogo, de educador, de escritor, ele tem uma grande capacidade de ação – essa coisa rara que é a fusão do intelectual e do homem de ação, qualidade que geralmente encontramos dissociadas e que nele estão não apenas unidas, mas unidas de uma maneira construtiva, de uma maneira harmoniosa, que lhe permite servir ao país com uma amplitude e uma intensidade de que temos poucos exemplos na nossa história mental e na nossa história política. Por que isso? Porque Darcy consegue aliar uma grande eminência intelectual à capacidade de atuar não em sentido qualquer, mas no sentido dos interesses mais legítimos da sociedade. Eu diria que Darcy, apesar de ser uma personalidade voltada para ele, é, sobretudo, uma personalidade voltada para os outros. É um homem de capacidade criativa, uma capacidade de imaginar, de representar a realidade de que há raros exemplos. Tudo isso, no seu modo de ser, no seu comportamento cotidiano, nas suas afirmações, revela aquilo que eu chamaria de uma grande euforia criadora.

 Isto posto, pergunta-se: onde está a manifestação de toda essa energia mental? Em primeiro lugar na sua produção científica, nas grandes contribuições que ele trouxe para a antropologia desde moço, em colaboração com sua esposa, Berta Ribeiro; tudo aquilo que ele fez como descoberta do índio, como revelação da vida indígena. E nessa grande contribuição para a antropologia, temos que assinalar, de maneira muito especial, a reflexão dele sobre o Brasil. À medida que ele foi conhecendo o país, foi conhecendo o índio, foi passando, vamos dizer, da antropologia para a visão histórica do país, para uma espécie de sociologia da cultura, para uma espécie de reflexão sobre as instituições políticas. Então, ele se transformou de um antropólogo especializado em vida indígena num conhecedor de todos os aspectos do seu país. Ao antropólogo se sobrepôs o conhecedor do Brasil, e não apenas o conhecedor, mas o homem que interpreta o seu país com vistas a propor novas vias, novos caminhos. Isso é visível não apenas nos seus livros mais sistemáticos, mas no seu ensaísmo, num livro como Ensaios Insólitos, que revela coisas novas em cada tema que aborda.

Finalmente, coroando tudo isso, de uma maneira muito interessante, surge o romancista; é um percurso raríssimo esse do cientista especializado, o pensador em nível geral, culminado pelo romancista. É uma carreira de uma originalidade e ao mesmo tempo de uma harmonia extraordinária, porque, em todos esses níveis, ele está sempre conhecendo o seu país, conhecendo o homem, revelando o seu país e revelando o homem. É uma obra de uma harmonia extraordinária.

Além de ser um grande educador, sentiu também que o educador só se completa se for apoiado por uma ação política adequada. Então, do educador, surge harmoniosamente o político, surgindo o Darcy Ribeiro completo. É o homem que começa na etnologia, passa pela reflexão de seu país, chega à criação ficcional, entra para a transformação dessa realidade que estudou nesses planos todos, aprofunda-se nos problemas da educação e coroa tudo pela ação política, que é desenvolvida com uma coragem e uma combatividade extraordinárias.

Darcy Ribeiro é um homem de formação de esquerda. Na sua mocidade, ele foi militante de esquerda. Como homem de esquerda, sentiu de maneira profunda os problemas da sociedade e quis resolvê-los a partir da raiz, daí sua radicalidade.

Por outro lado, a esquerda traz, frequentemente, um certo sectarismo, e, no jovem Darcy, havia algum sectarismo, que a experiência da realidade permitiu corrigir. Então, ele alcançou posições de esquerda muito realistas, muito amplas, até difíceis de classificar e que não cabem na rubrica de nenhum partido propriamente. Ele escolhe um partido, entra para um partido, mas a sua realidade é muito mais ampla, é uma radicalidade de quem conhece a necessidade de resolver os problemas pela base e sabe quais são esses problemas.

O resultado é que a sua carreira de ativista cultural, forrado de ativista político, permitiu-lhe, por exemplo, ter uma visão totalmente revolucionária do ensino e da universidade. Ele teve uma carreira luminosa de criador e reformador de universidades, de paladino do ensino primário, de lutador pelas reformas essenciais do Brasil. De modo que o político coroa tudo isso a partir das suas raízes de esquerda, propiciando a formação de uma radicalidade construtiva, que é realmente extraordinária.

Por isso eu diria que poucos merecem, como Darcy Ribeiro, uma homenagem como esta que lhe está sendo prestada em Marília. No caso de Darcy Ribeiro, não se trata de um protocolo, não se trata de uma comemoração, não se trata de um ritual, mas do reconhecimento da eminência de um homem que merece tudo do país ao qual tem servido de uma maneira luminosamente lúcida e corajosamente reformadora.

E diria mais: ele não apenas merece este preito dos brasileiros como também merece por parte dos latino-americanos, porque, devido ao exílio político, Darcy Ribeiro se projetou sobre a América Latina, no Uruguai, Chile, Peru, Venezuela. Ele também foi um reformador. O seu rastro luminoso não se restringiu ao Brasil; é um homem de dimensão latino-americana, homem que pesou no seu continente e, por esse motivo, pôde, no plano especulativo, raciocinar e produzir, com tanta pertinência, obras notáveis sobre o Brasil em relação à América Latina. Assim como ele tem uma teoria sobre o Brasil, tem também sobre a América Latina. E essa é uma contribuição, a meu ver, fundamental porque o nosso destino futuro só terá êxito se for integrado na nossa qualidade de latino-americanos, e isso Darcy Ribeiro viu de uma maneira extraordinária.

Em resumo, diria que estamos na frente de um autêntico grande homem, qualificativo que se deve dar com muito cuidado, porque só se pode dar em poucas ocasiões e, no caso dele, constitui apenas reconhecimento de uma realidade indiscutível: Darcy Ribeiro é um grande homem.

Texto publicado em 25 de janeiro de 1997, no Caderno de Ideias do Jornal do Brasil, que comemorava os 10 anos da premiação Homem de Ideias.  Darcy foi escolhido o Homem de Ideias de 1996, como também fora indicado o primeiro Homem de Ideias da série, em 1986.