Êxitos de Jango

O governo de Jango, em seus 31 meses, apesar de toda a oposição, fez muitas coisas de importância decisiva para o Brasil. Criou a Eletrobrás, que Getúlio não pôde instituir, porque fora obstaculizado até o desespero. Eram as Lights que financiavam a campanha de imprensa que o levou ao suicídio. Mais tarde, foi desapropriada numa negociata escandalosa. Agora, uns vende-pátrias a privatizaram porque, sendo imensamente lucrativa, não deveria permanecer como patrimônio público. Foi doada aos banqueirões. Jango fez aprovar a Lei de Comunicações sob o desespero da UDN, que se opôs a ela através de seus deputados no Congresso e de campanhas de difamação fora dele.

Promulgou a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional e pôs em execução o primeiro Programa Nacional de Educação.

Criou o Ministério do Planejamento, entregue a Celso Furtado, que propôs o Plano Trienal, destinado a coordenar o desenvolvimento autônomo e socialmente responsável do Brasil.

Municipalizou o sistema de saúde do Brasil.

Pôs sob controle as importações de insumos farmacêuticos, em que se registravam superpreços de até vinte vezes o custo internacional das mercadorias, com apoio escandaloso da embaixada norte-americana. Instituiu, para desgosto do patronato, o 13º salário.

Promulgou o Código Nacional de Telecomunicações. Reconheceu a CGT como central única dos trabalhadores. Pôs em execução o sindicalismo rural, através do Estatuto do Trabalhador Rural.

Reconheceu a URSS, com quem restabeleceu as relações. E estava fazendo o mesmo com a China continental. Solidarizou-se sempre com Cuba, em face da agressividade norte-americana. Tudo isso e muita coisa mais, de que não me lembro agora.

Entre as batalhas vitais que teve que enfrentar, conta-se a anulação do saqueio das jazidas minerais, no valor de bilhões de dólares, que a Hanna Corporation vinha realizando em Minas Gerais, com todo o apoio da embaixada norte-americana e de seus serviços de conspiração e suborno. Batalha não menor foi enfrentar os interesses econômicos norte-americanos  contra  a desapropriação  de bens  da ITT, que Brizola havia promovido no  Rio Grande do Sul; bem como a encampação, que ele também promovera, de uma empresa elétrica da Bond & Share. O Departamento de Estado norte-americano fez todas as chantagens possíveis e impossíveis, jogando com a dívida externa do Brasil e buscando desmoralizar o governo, na tentativa de nos levar à bancarrota. Chegou mesmo a promulgar a emenda Hickenlooper, ameaçando os países que incomodassem os trustes norte-americanos de sofrer represálias avassaladoras. Usou descaradamente recursos da prometida Aliança para o Progresso para subsidiar governos estaduais contra o governo central. Chegou ao absurdo de desviar as verbas do convênio do trigo, depositadas em bancos brasileiros e movimentadas pela embaixada norte-americana, para indispor governos estaduais contra o presidente da República, o que obrigou Jango a uma postulação formal contra tais atos atentatórios à unidade federativa do Brasil e contra o imperativo constitucional de que só o governo central faz política exterior.

Façanha mais ousada de Jango foi dar apoio ao movimento camponês que se expandia em todo o Brasil, à sombra de seu governo, integrando os trabalhadores rurais ao trabalhismo.

Apesar da ignorância e da pobreza em que são mantidos, esses milhões de cidadãos brasileiros têm uma consciência larvar de seus direitos. Sempre que se enseja uma oportunidade, eles se alçam. O fazem  quase sempre de forma arcaica, apelando ideologicamente para figuras messiânicas ou para rezadores, mas muito concretamente se apossando da terra para si mesmos. Os poderosos vêem claramente suas intenções e sabem da necessidade de mobilizar o Exército para esmagá-los. Assim foi em Canudos e no Contestado.

Com o advento da democracia, os lavradores afiliaram-se ao queremismo de apoio popular a Getúlio Vargas e, depois, ao janguismo, sem ter maiores motivos de gratidão a Getúlio, que sempre os desconheceu. Mas com crescente identificação com Jango e com o trabalhismo, que começou a vê-los.

Alçamentos rurais ocorreram desde sempre, movidos pela fome durante as secas do Nordeste, o que dava lugar a saqueios eventuais. O primeiro movimento popular relevante de base rural foram as ligas camponesas, de Francisco Julião.

Mais tarde, surgiram os movimentos de sindicalização rural, em que católicos e comunistas se juntavam para organizar sindicatos de lavradores. Legalizados por Jango, esses sindicatos se multiplicaram, passando a constituir uma ameaça crescente ao monopólio da terra. Um congresso camponês realizado em Belo Horizonte, em 1961, reuniu 1600 delegados de todo o Brasil, exigindo “reforma agrária na lei ou na marra”.

Jango não venceu todas essas batalhas, mas as enfrentou com altivez, não se entregando submisso ao poderio norte-americano, como é habitual. Sublinhou, em cada caso, o que correspondia aos interesses brasileiros. Constituiu, até sua queda, o problema mais grave que a América do Norte enfrentou na América do Sul.

Devemos também ao presidente João Goulart ter criado, apesar de toda a oposição feroz que enfrentou, um ambiente de liberdades públicas e de criatividade cultural que o Brasil nunca vivera antes. Nunca foi tão grande também a participação popular na vida política e cultural. Ninguém foi preso por motivação política e todo apoio possível foi dado às organizações que se mobilizavam pela liberdade e pelas reformas. Assim é que surgem e crescem os centros populares de cultura da União Nacional dos Estudantes, através dos quais a juventude universitária se solidarizava com seus companheiros de geração das camadas mais pobres e levavam a todo o Brasil o pensamento mais progressista, a música, o teatro e o cinema nascentes.

Tive todo o apoio de Jango para criar a  Universidade de Brasília, solicitada ao Congresso por Juscelino Kubitschek, mas efetivamente concretizada por Jango. Com ela, se desencadeia a reforma universitária brasileira, lamentavelmente jugulada pela ditadura militar, que, na sua boçalidade, esmagou tudo que representava criatividade cultural.

Daquelas boas sementes bem enraizadas nasceram as árvores do cinema novo, com Nelson Pereira dos Santos – Rio 40 graus; Glauber Rocha – Deus e o Diabo na Terra do Sol; o nosso teatro social participativo de Dias Gomes – O pagador de promessas – e de Guarnieri – Eles não usam black-tie. Bem como a bossa nova de João Gilberto e Tom Jobim.

Já no exílio, vi florescer a árvore fantástica, com revelações como o clarim de Maria Bethânia cantando Carcará. A ternura brasileira de Chico Buarque. O profundo sentido de nação de Vandré, de “esperar não é saber”. Toda a beleza do tropicalismo de Caetano, Gil e Gal. O Teatro de Opinião e o bravo Pasquim. A voz telúrica de Clementina de Jesus.

Este texto, assim como o do mês passado, foi publicado no Capítulo 6 – Governo – do livro Confissões, de Darcy Ribeiro, com edição póstuma em 1997.