Iemanjá

O acontecimento mais importante e mais belo da cultura brasileira nas últimas décadas foi a criação do culto à nova Iemanjá das praias. Ela era uma deusazinha de rios e riachos, também dos pescadores, cultuada em São Paulo a 2 de março, e na Bahia, a 2 de fevereiro.

Transfigurada, Iemanjá se fez maior, muito maior que a Semana de Arte Moderna dos paulistas. Maior até do que tudo que nossa cultura erudita produziu. Tão grandiosa que se inscreveu no calendário para colorir a vida de todos os brasileiros.

Iemanjá surge como um culto de multidões que se espalhou logo por todas as praias do Brasil. Um eminente ministro da Cultura da França, convidado por mim para apreciar o culto, pediu que eu o transferisse para o Natal. Ignorante.

O criouléu do Rio foi que, na sua genialidade, arrastou o culto a Iemanjá para 31 de dezembro. Aposentou, assim, esse Papai Noel nórdico que viaja sobre o gelo num trenó puxado por viadões para pôr presentes pros meninos das casas que têm chaminé. É um culto alienado, bobão, que nos dias de maior sol de verão, em que contamos com tantas frutas maduras: manga, abacaxi, caju, abiu, jabuticaba, pinha, jaca, banana, graviola etc., obriga os tolos a importar frutas meio ardidas para comemorar o nascimento do menino Deus e o Ano Novo.

Nosso Jesuscristinho brasileiro certamente não gostava disso. Queria era uma festa como essa, que agora os negros do Rio e de todo o Brasil lhe dão, cultuando Iemanjá juntamente com a imensa brancalhada, que aderiu logo à nova deusa.

A Iemanjá ninguém pede cura do câncer. Nem Darcy. O que se pede é que o marido não bata tanto e que a namorada seja mais carinhosa. Iemanjá é uma deusa do amor. Deusa que transa, como as que os gregos criavam e agora os negros do Brasil ressuscitam.

Todo ano vejo, gozoso, mais de 2 milhões de pessoas, todas vestidas de branco, vindas de toda parte, caminhando alegres para a praia de Copacabana. Vão saudar Iemanjá. Às 23h30 desço eu, também vestido de branco, para atravessar a multidão e chegar até o mar. Lá, com os pés molhados, ungido por Iemanjá, faço meus pedidos rogando a ela que atenda minha fome insaciável de amor. Vejo, em espanto, a prodigiosa queimação de fogos com que querem desviar a atenção do povo. Na verdade, animam e embelezam a festa de Iemanjá, fazendo dela uma missa musculosa dos brasileiros de todas as cores.

Vá, amigo, a alguma praia, vestido de branco. Entre na água e deixe Iemanjá beijá-lo. Você estará sagrado, de corpo fechado, atrativo ou atrativa como o diabo, o ano inteiro. Feliz Ano Novo, próspero e tesudo.

Este texto foi publicado na coluna semanal de Darcy Ribeiro no jornal  Folha de São Paulo entre agosto de 1995 e fevereiro de 1997. Depois republicado em Crônicas Brasileiras, coletânea organizada e selecionada por Eric Nepomuceno entre os textos publicados nesta coluna. Editora Desiderata, 2009.