IN MEMORIAN: DARCY

“’Bandidos’! Não se pode criticar esta obra magistral!”  Assim começou o que seria uma longa relação intelectual e de amizade entre Darcy e vários dos que então integravam as Cátedras Nacionais na Universidade de Buenos Aires. Era o verão de 1971. Ele acabara de publicar As Américas e a Civilização e Salvador Allende o havia convidado para o cargo de assessor do seu governo, naqueles tempos de euforia e esperanças que, para Darcy, eram de exílio. Também plenos de euforia e esperanças, aproximávamos de nossos trinta anos de críticas a tudo e viajáramos ao Chile para conhecer de perto esta peculiar experiência socialista. A crítica Às Américas… focava uma certa antropologia que tendia a enfatizar semelhanças entre a Argentina e os Estados Unidos como “povos transplantados”, relegando, em parte, a dinâmica histórico-política que impunha distâncias qualitativas. Mas era uma crítica imersa em fortes simpatias com este livro, porque a caracterização dos movimentos de massas na América Latina – e em particular do peronismo de resistência do qual participávamos – deixava de lado as qualificações simplistas de populismo e abria novos caminhos de interpretação da história e da política latino-americanas. A partir desse encontro no Chile, Darcy transformou-se em nosso grande aliado internacional do campo político-acadêmico; e para muitos de nós seria, desde então, uma referência inestimável para as tentativas de pensar este mundo complexo. A aliança entre o ‘imperador’ e os ‘bandidos’ atravessaria a ebulição do continente no último quartel do século, em que os encontros, as cartas, os intercâmbios de ideias, as referências diretas ou distantes sobre as vidas e as mortes, conservaram sempre o diálogo cálido entre amigos que compartem seus projetos de vida.

Há narcisismos solenes que se tornam insuportáveis. Mas Darcy tinha um narcisismo que, ao combinar-se com um sentido de humor transbordante e um atrevimento surpreendente, dava a ele um atrativo especial: “Minha mãe não me pariu, ela me fundou”, afirmava em público sem nenhum problema; afirmar por escrito seu desejo de retornar ao Brasil como ‘imperador’; declarar que ia escrever sua autobiografia porque lhe permitiria fazer o que mais gostava, que era falar de si mesmo. Com essa cabeça brilhante e criativa, menosprezava as classes dominantes latino-americanas por sua condescendência aos poderosos e sua mediocridade com a mesma paixão com que admirava a dignidade resistente dos povos mestiços e lutava pela autonomia dessas terras. Sabia que a batalha era essencialmente cultural entre concepções de mundo de raízes profundas. Seu olhar antropológico o orientava para um caminho amplo – como assinalou um taxista cubano falando de Che – contrastando com o pensamento acadêmico hoje predominante nas universidades e com o pensamento político guiado por privilégio de posição. Darcy foi ministro de João Goulart, fundador da Universidade de Brasília e teórico do papel das universidades latino-americanas. Assessor do governo de Salvador Allende e mais tarde de Juan Velasco Alvarado no Peru, devia emigrar para o México, antes que um câncer de pulmão convenceu a ditadura militar brasileira de sua morte iminente e permitiu que voltasse ao país: “Tenho muito medo de regressar, mas me dá mais medo continuar neste longo exílio. Saudades”, dizia um cartão que deixou sem assinatura ao endereço de Rosário, onde estávamos escondidos em 1.977.

Pouco antes das eleições de 1973, quando tudo indicava que haveria um governo de orientação popular na Argentina, seus diagnósticos sobre nossas possibilidades eram contundentes: “Vocês, ou ministros ou merda. Porque os ‘bandidos’ são bons para lutar; mas quando alguém chega ao governo não há nada melhor que os oportunistas. Os oportunistas são simpáticos, amáveis, obedientes, sempre dispostos a elogiar o que um diz ou faz; em troca, os tipos como vocês são rebeldes, têm ideias próprias, criticam tudo: são uma merda para aquele que quer exercer o poder. Por isso, ou são ministros ou ficam fora.” Para que recordar que ficamos tantas vezes fora. Não obstante, Darcy ganhou 20 anos do câncer e retornou à política brasileira como vice-governador e Secretário de Ciência e Cultura do estado do Rio de Janeiro em 1982, implantando suas concepções e uma verdadeira obsessão por salvar da morte os meninos de rua dos bairros carentes. Porque ao chegar ao Rio de Janeiro, presenciou uma guerra contra os meninos de rua desencadeada nesta e em outras cidades pelos donos do poder e da riqueza. A criação das escolas de tempo integral para estes meninos, conhecidas como CIEP (centro integrado de educação pública), se fundamentava em ideias avançadas em educação e formação docente, baseadas em profundo respeito pela identidade, linguagem e cultura das classes populares. Talvez não tenha havido, em todo o continente, uma experiência educativa com este nível de qualidade, orientada aos setores mais desassistidos, desde os tempos em que Simão Bolívar e Simão Rodriguez conceberam seu projeto de educação popular em Chuquisaca até 1824.

Só a Darcy poderia ocorrer criar o Sambódromo e criar uma confrontação cultural com as escolas de samba que, por pouco, provoca a queda do governo, ao introduzir uma Apoteose no desfile dos participantes, promovendo uma reformulação profunda no carnaval carioca. Seus relatos sobre os nervos enlouquecidos e a intervenção televisiva de Brizola, afirmando que o Sambódromo havia sido criado para que ali as escolas de samba tivessem seu orgasmo (quando na realidade se tratava de sua apoteose), eram inigualáveis. O sarcasmo de Darcy parecia infinito; vivia intensamente e era capaz de registrar as mais sutis facetas do humano. Apesar de ser um conversador fascinante, a experiência como antropólogo, durante os 10 anos que passou convivendo com indígenas na selva, havia reforçado sua capacidade de olhar e escutar os outros, para reconhecer as armadilhas que a inércia cotidiana, demasiadas vezes, interpõe aos projetos de vida. “As instituições são boas e aprazíveis, mas muito perigosas, porque podem abortar o pensamento crítico. Nunca escreva por encomenda; é necessário escrever o que se pensa, seja como for. Se não, finalmente, vão derrotar-nos”, me disse quando nos encontramos no México, ao fim dos anos 70, ambos pertencentes ao mesmo instituto. Convencido de que a América Latina tinha um futuro diferente, nestes anos de tragédia, era preciso resguardar as ideias, também diante do perigo das pressões acadêmicas ou dos financiamentos institucionais para a investigação social.

Junto com Niemeyer, este outro grande talento brasileiro, desenharam e realizaram o Memorial da América Latina em São Paulo, porque o Brasil devia romper seu isolamento cultural com as outras nações do continente e, antes de tudo, era preciso reforçar o conhecimento mútuo. Quando Darcy falava sobre o Memorial, a imagem de um guri negro de dez anos, olhando concentrado um vídeo sobre a história dos Incas, parecia suficiente para justificar toda sua vida. Mas ao chegar ao meio dos anos oitenta, as sequelas das ditaduras e as democracias que começavam a reinstaurar-se pareciam ter debilitado as paixões utópicas e as ideias críticas: as normas formais, o debate sobre se éramos ou não éramos cidadãos virtuosos, o temor diante dos populismos ou corporativismos, o fim dos grandes relatos, a crise dos paradigmas teóricos, reocupavam as preocupações intelectuais e políticas dos antigos compromissos com  as reivindicações sociais e culturais, com a autonomia e a integração latino-americanas. “Temos perdido muitos amigos, não entendo o que passou com eles: escrevem merda e pensam merda”, dizia Darcy uma vez em Buenos Aires, avaliando suas entrevistas com intelectuais argentinos. Nomeava-os um a um, com consternação e nostalgia; pensava que na Argentina esse fenômeno – estendido em toda a América Latina – era especialmente grave. Porque se a densidade das ideias e concepções culturais constituíam o núcleo da transformação política, as ideias banais em voga junto às hegemônicas neoliberais indicavam que ainda havia um longo caminho a percorrer para chegar aos sonhos.

Entre tantas outras, Darcy tinha me dado as chaves para ver que cada geração na América Latina renovava as formas de resistência e o questionamento aos poderosos desde os tempos da conquista. Tinha a secreta esperança de que ia acompanhar esta geração que finalmente dera às linhagens populares a segunda oportunidade sobre a terra. Eleito senador da república, a Revista Carta: memórias, falas, reflexões que publicava em Brasília, era mais um instrumento de sua batalha urgente e desigual contra as restaurações conservadoras, o tempo e o câncer. Por isso soam ainda mais dilacerantes as perguntas que formulou em O Povo Brasileiro. Onde está a intelectualidade iracunda que seja a voz deste povo famélico? Onde estão as militâncias políticas que armem os latino-americanos com uma consciência crítica esclarecida sobre nossos problemas e decida ultrapassar tantos séculos de padecimento? Frente ao silêncio ruidoso destas vozes de indignação, o que prevalece é o entorpecimento produzido pelos meios de comunicação. E a inclinação quase irresistível de tantos subintelectuais de culpar os negros pelo atraso em que estão atolados; de culpar os pobres por sua miséria; de culpar as crianças do povo por seu fracasso na escola; de atribuir a fome à imprudência da população; de acusar os enfermos como culpados de seus males pela falta de higiene ou negligência. O que nos sobra nestes tristes dias são as vozes de irresponsáveis, sensíveis somente aos interesses minoritários e às razões do lucro.

Este era Darcy para nós. Sei que existiam no Brasil críticas a ele por ações políticas que só conheço em linhas gerais. Mas não duvido de que no balanço da sua história serão arrasadas por essa torrente de ideias; por sua crença inquebrantável na dignidade dos humilhados; pela paixão pela América Latina materializada na Universidade de Brasília, nos CIEPs, no Memorial da América Latina, no Sambódromo, em livros, romances e artigos. Não duvido de que todos esses “fazimentos” alimentarão as novas gerações de ‘bandidos’ latino-americanos que hoje, simplesmente, estão crescendo. E se talvez, o absurdo da morte só há de mitigar o sentido da vida, Darcy foi um destes privilegiados que pode confessar que viveu.

Este texto foi publicado na Revista de Crítica Cultural El Ojo Mocho, no. 9/10 em Buenos Aires no outono de 1997.