JANGO

João Belchior Marques Goulart nasceu a 1º de março de 1918, num casarão da cidade de São Borja, no Rio Grande do Sul, filho de um rico estancieiro. Ele e Getúlio Vargas, também nascido ali, traziam marcas indeléveis de sua comunidade nativa. O espírito de fronteiriço que lhes emprestava nativismo caloroso se converteu em nacionalismo político ativo. E o talento para a convivência íntima, mas desigual com as classes subalternas. Ambos tinham uma evidente capacidade de conviver, de liderar e de se fazer respeitar por trabalhadores ou líderes trabalhistas que com eles tivessem contato. É inimaginável um mineiro deixando-se pentear, como Gregório fazia com Getúlio. É também inimaginável a convivência amiga da roda do chimarrão, todos chupando da mesma guampa e conversando por horas sem que isso tolde sequer o respeito pelo patrão.

Esse talento é, provavelmente, característica distintiva dos povos pastoris, que geram facilmente grupos de cavaleiros rebeldes, armados e agressivos, mas vinculados por uma camaradagem hierárquica. No Rio Grande do Sul, composto de senhores de terras e gados e de gaúchos pobres, dá-se o mesmo. No Nordeste os cavaleiros combativos são jagunços, recrutados todos entre sertanejos pobres, e não há nenhuma convivência simétrica entre eles.

As próprias lides pastoris ensejam um convívio social mais igualitário, impossível nas zonas propriamente rurais, em que se enfrentam os fazendeirões e os enxadeiros a eles subordinados e servis. Lidar com cavalos exige perícia e brio que no mais das vezes estão mais nos muitos gaúchos peões do que nos poucos gaúchos patrões, perfeitamente capazes de compreender, estimar e aproveitar os talentos de seus homens.

(…)

João Goulart que assume a Presidência em 1961 era um político experimentado na arena política. Teria uma carreira brilhante e tranquila se se comportasse como os políticos de sua classe. Ele era diferente, porém, por sua adesão, herdada de Getúlio, mas muito mais profunda, à classe trabalhadora, cujos interesses defendia com a mesma gana com que o PSD e a UDN defendiam as classes empresariais.

Jango era, também, ao contrário do que se diz, um homem preparado para o exercício do poder, que não tinha para ele os encantos da pompa, mas o desafio de reformar a institucionalidade para transformar a realidade social a favor dos mais pobres. Ao longo de sua vida de líder trabalhista, Jango foi formulando um ideal próprio que respondia às reivindicações fundamentais dos trabalhadores. Assim é que ele chega à Presidência, já com duas ideias oriundas da Carta-testamento [de Getúlio]: colocar sob controle o capital estrangeiro e criar a Eletrobrás como a grande organização que, já sob seu governo, empreenderia a multiplicação do potencial energético do Brasil. Para além da Carta, Jango queria garantir e regular o direito de greve e empreender a sindicalização dos trabalhadores rurais. Pretendia também promover uma reforma agrária que desse um quinhão de terra a milhões de famílias desalojadas do campo pelos latifundiários. Esperava ainda reformar o sistema fiscal, para não pesar tanto sobre os assalariados, e redistribuir as rendas públicas em favor dos estados. Queria ainda congelar os aluguéis, reformar a educação, o sistema bancário, a administração pública, a previdência social e o sistema partidário.

Sabendo que essa era sua índole, as classes dominantes levantaram contra ele a maior oposição que eram capazes de mover. Já no começo de sua carreira, quando Jango, como ministro do Trabalho, quis dobrar o salário-mínimo, levantou-se a maior grita. Depois quiseram obstar a candidatura de Jango a vice-presidente de JK. Não conseguiram, porque ele já era, visivelmente, o grande eleitor do Brasil, sem cujo apoio o PSD não alcançaria a Presidência. Por fim vetaram, após a renúncia de Jânio, que Jango assumisse a Presidência. Só consentiram ao ver que teriam que enfrentar uma guerra cruenta comandada por Brizola. Preferiram a manobra parlamentar de cortar-lhe os poderes, implantando o parlamentarismo.

Todo o ódio que as classes dominantes sempre tiveram a Getúlio Vargas por sua política trabalhista se derramou contra João Goulart como seu sucessor. Só Brizola foi mais atacado do que Jango por toda a mídia e através dos procedimentos mais sujos. Lacerda chegou a falsificar uma carta que um suposto deputado argentino teria escrito a Jango, cujo desmentido, alcançado na Justiça, custou enorme esforço. Seu objetivo era incompatibilizar Jango com a oficialidade, como um perigoso conspirador da fronteira sobre a qual eles estavam sempre atentos, que era a Argentina. Esses ataques subiram em escalada, chegando afinal até o planejamento de seu assassinato. Com efeito, o Exército, numa vistoria das imediações da casa de Jango, em Jacarepaguá, encontrou enorme armamento ofensivo, que, obviamente, se destinava a um atentado contra ele e sua família.

Essa tendência perigosa criava problemas para os oficiais que davam segurança a Jango e para a própria Casa Civil. Mais uma vez falei com ele sobre a necessidade de proteger-se. Mas era impossível dissuadi-lo, por exemplo, das escapadas que fazia para descansar do ambiente de tensão que havia nos palácios. O que mais gostava era de ir com o avião presidencial até uma fazenda que ele estava abrindo em Goiás, lá obrigar os oficiais a regressarem, inclusive o encarregado da caixa-preta que era um sistema de comunicação que devia estar sempre perto dele. Queria é, acompanhado só de um roceiro de lá, vistoriar os trabalhos, andando a pé, e pescar por horas num rio em cuja margem às vezes dormia. Gostava também, muito, de sair, no Rio e Brasília, só, em seu carro, para longos passeios ou para visitar de surpresa os velhos amigos com quem mais gostava de conversar.

A direita tinha razão de temer Jango. Sob sua direção, o PTB cresceu de 22 deputados em 1946 para 66 em 1958 e para 116 em 1962. Na verdade, tinha 136, porque Jango guardava na gaveta cartas de vinte parlamentares pedindo ingresso no PTB. Já era, pois, o maior partido do Congresso e o mais capaz de crescer. Um concorrente perigosíssimo para as eleições presidenciais de 1965.

Edição de texto a partir de Confissões, 1997. p. 281-286