Minhas Peles

Confesso aqui, de coração na boca, que me comove demais esta cerimônia. A Universidade de Copenhagen, uma das grandes universidades do lado de cima do mundo, me chama a mim, lá de baixo do Equador, para homenagear. É lindo. Muito obrigado.

Quem sou eu? – me pergunto. Quem sou eu que estou aqui? Que fiz eu de minha vida para merecer esta homenagem? Até gosto de me ser, tal qual sou, mas reconheço que meus méritos são escassos. Minhas mãos, inúteis para fazimentos, só servem para escrever e acariciar. Não sei dançar, nunca soube, o que sempre me vexa. Olho, idiota, o céu, maravilhado de seu esplendor, sem reconhecer, constelações ou estrelas. Das árvores inumeráveis do meu mundo brasileiro, todo feito de arvoredos os mais variados, reconheço uma dúzia se tanto. Diante das flores, do milagre de suas formas, cores, perfumes, eu paro perplexo. Só reconheço rosas, cravos, jasmins, girassóis e umas poucas mais. A música clássica, prodigiosa criação humana, me assusta e me cansa. Fala a outros muito mais que a mim.

De todas as coisas desse mundo tão variado, a única que me exalta, me afeta, me mobiliza, é o gênero humano. São as gentes. As ínvias gentes índias, com quem convivi intimamente tantos anos, os mais belos que vivi. As gentes nacionais, que me acolheram nos meus longos anos de exílio mundo afora. Mas, principalmente, minha amada gente brasileira, que é minha dor, por sua pobreza e seu atraso desnecessários. É também meu orgulho, por tudo o que pode ser, há de ser, como uma Civilização Tropical de povos morenos, feitos pela mistura de raças e pela fusão de culturas.

Mas meu tema, hoje, sou eu mesmo e devo versá-lo com o gosto que tenho e confesso de falar de mim. Quem sou eu? Às vezes me comparo com as cobras, não por serpentário ou venenoso, mas tão só porque, eu e elas, mudamos de pele, de vez em quando. Usei muitas ·peles nessa minha vida já longa e é delas que vou falar hoje.

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Quando digo que sou socialista, o socialismo que sonho é o de uma civilização avançada, com este talento índio da convivência e da solidariedade. Creio que no convívio com os índios eu me refiz, o que aprendi com eles é talvez o que me singulariza entre os intelectuais de minha geração. Aos índios devo também a dignidade que me deu a luta que travo há 40 anos para salvá-los. Não os salvei e esta é a dor que mais me dói. Apenas consolam algumas parcas conquistas, como a criação do Parque Indígena do Xingu e do Museu do Índio do Rio de Janeiro.

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É para lutar contra isso que faço política, movido por uma motivação essencialmente ética. Nunca fui um indiferente, ao contrário, meu pendor é para a indignação ante toda injustiça. Jovem, ainda na universidade, me fiz estudante comunista, porque esse foi o modo que encontrei de me preocupar com o destino humano, de me comover com o sofrimento de qualquer povo, em qualquer lugar da Terra. Entrei para a política militante quando vi, assombrado, o Presidente Getúlio Vargas, com mais de 70 anos, matar-se, arrebentando o coração com uma bala, para fugir ao assédio de uma campanha de desmoralização pela imprensa custeada pelos grupos mais ricos. Frente a esse drama, eu me perguntei por que aquele homem, o mais amado pelo povo pobre, era tão ferozmente odiado pelas elites. Vi ali que o que causava revolta na minoria, que vive à tripa forra, era sua identidade com os trabalhadores e sua política nacional de industrialização e de produção autônoma de petróleo e de eletricidade. Desde então me defino como socialista. Socialista no sentido trabalhista, de quem luta para forçar o capital a remunerar melhor o trabalho, de lutar para que o Estado cumpra seus deveres na área de educação e de assistência às camadas mais carentes da população. Isto sou hoje.

Com a pele de político militante, fui duas vezes Ministro de Estado, mas me ocupei fundamentalmente foi na luta por reformas sociais, que ampliassem as bases da sociedade e da economia, a fim de criar uma prosperidade generalizável a toda população. Nesta luta me concentrei principalmente na defesa de uma Reforma Agrária, que democratizasse a propriedade da terra a fim de integrar milhões de lavradores na economia nacional, evitando que se vissem forçados a engrossar a massa de favelados das cidades. Cerca de dez mil grandes proprietários se apossaram de 80% do continente Brasil. Nesse mundão de terras, eles não plantam nem deixam plantar. Condenam, assim, milhões de brasileiros à penúria.

Fracassando nessa luta pelas reformas, eu me vi exilado por muitos anos e vivi em diversos países do mundo. Minha pele de proscrito foi mais leve do que se poderia supor. Nela pude ver meu País em conjunto, como só se vê olhando de fora. Comparando. Tentei também, naqueles anos, compreender melhor as causas do desempenho medíocre do Brasil na Civilização Industrial. Neste esforço escrevi meus Estudos de Antropologia da Civilização. São seis volumes, com quase duas mil páginas. No primeiro deles, O Processo Civilizatório, proponho, para tornar nossa realidade inteligível, uma teoria não eurocêntrica da história. Em As Américas e a Civilização, analiso as causas do desenvolvimento desigual da América Saxônica e da América Latina. Em essência, tento entender como e porque entraram em decadência na Civilização Industrial justamente as áreas que, no passado, produziram maiores riquezas e edificaram cidades majestosas como o México, Lima, Bogotá ou a Bahia, o Recife e o Rio de Janeiro.

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De volta do exílio, retomei minhas peles todas. Hoje estou no Brasil lutando pelas minhas velhas causas, a salvação dos índios, a educação popular, a universidade necessária, o desenvolvimento nacional, a democracia, a liberdade. No plano político, me elegi vice-governador do Rio de Janeiro e depois Senador da República, função que exerço agora.

Em todos esses anos de pós-exílio, me ocupei principalmente da educação. Tive, aliás, a maior alegria da minha vida de educador ao ganhar o Governador Leonel Brizola para a ideia de criar um novo modelo de escola pública, os Centros Integrados de Educação Pública – CIEP – que acolhem mil crianças, 700 durante o dia e 300 a noite, dando a todas elas assistência necessária para progredirem nos estudos.

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Muita gente está disposta a me homenagear como educador pela contribuição que dei a esses empreendimentos, e eu bem sei que não há aí nenhum mérito de educador. Os educadores brasileiros, desde o princípio do século, reclamam que se faça aqui escolas honestamente ajustadas a seu alunado e que correspondam ao mundo civilizado. O único mérito que tive foi de encontrar governantes com espírito de estadistas, capazes de dar prioridade à educação, entre todas as tarefas do Estado.

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Em todas e em cada uma das minhas peles, me exerci sempre igual a mim, mas também variando sempre. Se tivesse ficado em uma só, teria feito, talvez, uma vida de mérito. Exercendo tantos papéis – antropólogo, educador, político, romancista – me dispersei demais, perdendo consistência biográfica. Mas não me arrependo, se me fosse dado viver outra vida, eu faria o mesmo. Afinal, não vivemos só para servir. Vivemos também e principalmente é para nos exercermos como humana gente, curtindo a vida, tirando dela o gozo que nos pode dar. Apesar de todos os amargores, gosto muito de ter vivido a vida que vivi e guardo no fundo do peito a esperança de que meus fazimentos maiores não estejam no passado, mas no futuro. Serão aqueles que ainda hei de fazer. Muito obrigado.

Texto postado em outubro de 2023, no 101º. Aniversário de Darcy Ribeiro



Discurso de Darcy Ribeiro ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Copenhagen em 21 de novembro de 1991. Foi publicado no Informe de Distribuição restrita do Gabinete de Darcy Ribeiro no Senado em 1992. Também foi publicado, no mesmo ano, com o título de Minhas Peles no livro O Brasil como problema, pela Editora Francisco Alves.