Nossas Elites

O Brasil tem uma elite? Sim, obviamente tem. Resta saber se é uma elite boa ou ruim. Elite é aquele corpo seleto de pessoas que maior influência exerce na organização e na condução de sua sociedade. Ela é formada por dois corpos principais: o patronado, que tira seu poderio da propriedade e exploração de empresas produtivas e de bancos; e o patriciado, formado pelos que mandam através do desempenho de cargos, como os políticos, os juízes, os generais, os tecnocratas, os administradores, os bispos, os principais jornalistas e tantos outros.

Às vezes tomam-se ambíguo, como no caso de empresários bem-sucedidos, que entram na política para exercer mais plenamente sua vontade de poder e de riqueza. Ou o dos patrícios, que exercem seus cargos para enriquecer, a fim de ingressarem no patronado. Mesmo quando distinguíveis, eles são essencialmente solidários, porque a função efetiva do patriciado é a ordenação legal e jurídica da sociedade, seu governo e a manutenção da ordem, para que o patriciado possa exercer livremente sua função de gestor da economia.

Em algumas sociedades, essas elites exercem um vivaz papel renovador, ampliando as bases de participação da cidadania na vida nacional e dos trabalhadores no usufruto da prosperidade econômica. Em outras, seu papel é feiamente negativo, porque consiste, essencialmente, em açambarcar todo o poder e se apropriar de toda a riqueza em que possa pôr as mãos. É o nosso caso, de elites empresariais e burocráticas socialmente irresponsáveis.

Para bem avaliar nossas elites ·é bom compará-las com outras. A elite norte-americana exemplifica bem o papel altamente positivo que um patronado e um patriciado podem exercer dentro de uma sociedade capitalista. A nossa, ao contrário, tem sido o principal fator causal do desempenho medíocre do Brasil, expresso na incapacidade de criar uma economia de prosperidade generalizada. As elites norte-americanas, por exemplo, abriram todo o seu Oeste, imensíssimo, aos pioneiros que quisessem ir para lá plantar uma roça e fazer uma casa, garantindo-lhes o direito a uma propriedade de 30 hectares. Criaram, assim, uma infraestrutura de milhões de granjeiros que constituíram a base da economia norte-americana e o fundamento de sua prosperidade. Nossa elite consagrou o latifúndio, obrigando cada trabalhador, ao sair de uma fazenda, a cair em outra igual. Disso resultou uma economia estreita, desprovida de mercado interno, fundada na grande propriedade improdutiva, que monopoliza a terra, não planta e não deixa plantar.

O lavrador que vai para os vazios de Mato Grosso, de Goiás, ou da Amazônia encontra a terra já apropriada cartorialmente por donos que nunca foram lá. Em consequência, expulsam dezenas de milhões de lavradores para engrossarem a massa de favelados da cidade.

A economia produtiva nos EUA respondia primacialmente às necessidades do próprio consumo. A nossa, ao contrário, se estrutura para servir ao mercado externo. Por este caminho, os EUA, a partir de uma economia colonial de grande pobreza, prosperaram extraordinariamente como uma sociedade que existe para si mesma. O Brasil, que era rico, ficou paupérrimo, na sua condição secular de proletariado externo do mercado internacional, em que desgastamos milhões de índios, de negros e de colonos, produzindo o que não consumiam e mandando também para fora o excedente econômico gerado, que foi enriquecer outras nações.

Essa velha história é espantosamente atual. O que nossas elites de hoje recomendam é perseverar no papel de vassalos da economia mundial, a ela entregando, pela privatização, o parco patrimônio que juntamos. Eles creem que nada há de melhor para a construção de uma próspera Nação brasileira do que entregá-la aos tecnocratas e a seus amos, que são os gerentes das multinacionais. Juntos, eles promoveriam o progresso. Algum cínico podia achar que é uma piada atribuir qualquer capacidade redistributiva à elite que mais monopoliza a riqueza nacional. Ou o Brasil não é o campeão mundial negativo da distribuição de renda?

Nós, como os norte-americanos, tivemos nossos pais fundadores, cuja dignidade, em muitas instâncias, pode servir de exemplo e de orgulho. Tivemos e temos também uma bela nominata de políticos conservadores, mas probus, armados de alto espírito público, com grandeza de estadistas. Ocorre, porém, que lá se consolidou uma postura crítica, eticamente exigente diante dos seus homens públicos, armada dos padrões morais e cívicos, enquanto que aqui eles se deterioraram e cresceu o número de políticões corruptos e indiferentes aos interesses nacionais e populares, propensos a desencadear golpes, a implantar ditaduras, a subornar e a deixar-se subornar.

A eles somou-se, nos últimos anos, todo um bando de políticos ladrões dos bens públicos que opera em conluio com as grandes empreiteiras para sangrar a economia nacional. Essa modalidade de ladroagem patricial floresceu muito com a ditadura militar, discricionária e corrupta, que entregou a condução da economia brasileira a esse tipo de tecnocrata, que acha legítimo lucrar no exercício de funções públicas. A situação se agravou com a democratização, pela tendência de muitos empresários, que antes financiavam campanhas políticas de · deputados e senadores, a comprarem mandatos para si próprios, levando ao Congresso seu furor privatista, revestido de um neoliberalismo que é, de fato, um neoconservadorismo.

Tudo isso resultou no episódio, que será registrado como afortunado na história brasileira, de um tecnocrata ensandecido que desvendou a roubalheira da Comissão de Orçamento do Congresso Nacional. O Brasil olha perplexo a Comissão de Inquérito que analisa a gigantesca roubalheira. Perplexo, mas esperançoso de que, desta vez, não se repita a impunidade, e que os sete anões e seus apaniguados sejam punidos e encarcerados e tenham os seus bens desapropriados para ressarcir o Brasil do que nos roubaram.

Estando às vésperas de uma eleição em que o povo elegerá, simultaneamente, o Presidente, governadores, senadores e deputados – depois de 50 anos em que não pôde fazê-lo – abre-se a perspectiva de que as elites brasileiras sejam passadas a limpo, para merecerem alguma vez a confiança do povo.

Já é tempo de fazê-lo. Até tarda, porque, frente a essa elite pervertida que vive à tripa forra, está um povo multitudinário, pobre e sofrido, entrando em desespero. Hoje, mais sofrido que ontem, porque lançado no desemprego e suas mazelas: a violência, a delinquência, o abandono dos menores, a prostituição de crianças, a fome e o depauperamento.

O que mais me dói dessa realidade perversa é que ela não é nem natural, nem necessária. É consequência da condução desastrada da economia e da política por uma elite patronal e patricial, notoriamente corrupta, irresponsável e infecunda.

Darcy Ribeiro, novembro/93.

Este texto foi escrito por Darcy Ribeiro em 1993, publicado na Revista Carta no. 10, em 1994-1, às vésperas da eleição geral de 1994.