O Pequeno Grande Homem

Marcos Terena

O movimento indigenista brasileiro perdeu três grandes homens, num período de três luas novas, entre o Natal e o Carnaval. Pessoas que, após pisarem o solo de terras indígenas, vivenciaram momentos tribais e passaram a dedicar suas vidas à defesa do índio. Primeiro, um autêntico sertanista, Xará, que ainda jovem ajudou a contactar os famosos índios gigantes, os Kreen-akarore, e que foi perseguido pelos militares na década de 80, quando assumiram a FUNAI. Em seguida, o célebre escritor Antônio Calado, que soube como ninguém retratar um dos rituais sagrados do Alto Xingu, o Quarup. Agora, quase imediatamente após a Quarta-Feira de Cinzas, o mais nobre e valente guerreiro da luta indígena: Darcy Ribeiro.

Darcy Ribeiro pensava em tudo, até mesmo num Memorial dos Povos Indígenas em plena capital federal, obra interrompida pelo governo de Brasília. Numa de suas inúmeras reinaugurações, surgiu a oportunidade de reunir negros, japoneses e índios, no que foi uma das últimas homenagens étnicas prestadas a Darcy. Naquele templo da cultura indígena, enquanto guerreiros Kuikuro cantavam a Dança do camaleão e os Karajá o Canto dos retorrocan, Darcy surgiu como um Tupã-I, um pequeno deus numa cadeira de rodas.

Continuava, porém, com o brilho nos olhos: o brilho da vida e da vontade de viver. Darcy jamais se insinuou ou pediu para ser pintado pelas cores indígenas como fazem alguns oportunistas, principalmente autoridades que gostam de aparecer na mídia, mas naquele dia saiu pintado e com o terno borrado pelas cores do urucum. Saiu feliz, parecia balbuciar aquelas canções da terra, das águas e dos pássaros…

Hoje os povos indígenas estão de luto. Perdemos um grande aliado, que fazia sérios e profundos questionamentos sobre a falta de uma política indigenista do governo de Fernando Henrique Cardoso. Jamais praticou uma crítica infundada. Pelo contrário, cada sorriso, cada comentário, cada texto sinalizava a lucidez, a inteligência e a coragem. Foi assim quando cassado. Foi assim na sua volta. Foi assim nos seus últimos dias entre nós. Talvez outros setores da sociedade também estejam tristes, órfãos como os CIEPs e o Sambódromo dos cari-ocas.

Darcy possuía humor e inteligência nas suas brincadeiras; fazia assim com a ditadura dos militares, com os amigos e até mesmo com a doença e com a morte, numa tradução dos princípios de bem viver do Brasil, do Rio, do “tudo bem”, do “aquele abraço”. Mas, mesmo no seu espírito irrequieto e brincalhão, havia o espírito da esperança, do Brasil melhor, do Brasil indígena, do Brasil negro, do Brasil transcultural. Nunca se esquecia de defender as coisas do Brasil, como a CSN, a Petrobrás e a Vale do Rio Doce. Tinha fé, assim como nós os índios, no nosso país e na capacidade de nossa gente. Por isso, aproveitava cada momento de sua vida na criação de novas ideias, e na concretização de sonhos através da educação.

Darcy se vai. Cansou-se de sentar na sua cadeira de rodas. Vestirá uma nova roupa. Vai ao encontro de grandes lideranças indígenas como Malacuiauá dos Waurás; Apoena dos Xavantes; Kretan dos Kaiagangs; Ibés, dos Uaçus; Marçal dos Guaranis; e João Príncipe dos seus queridos Kadiuéus. O nosso coração está triste, mas não há desânimo para a continuidade de nossa caminhada em busca da demarcação de todas nossas terras, usando todas as armas que possuímos, como estão fazendo os Krikati no Maranhão. Mas é preciso que o governo federal assuma seu papel e responda à voz de nossas mais de 200 tribos, com uma agenda social, cultural e econômica através de um projeto de vida para nossas inúmeras aldeias.

Esperamos que o governo brasileiro se inspire em Darcy que, baseado em seu aprendizado indígena, jamais abaixou a cabeça diante do que acreditava. Fernando Henrique Cardoso deve assumir esse compromisso moral com Darcy Ribeiro. Afinal, há uma profecia que precisa se concretizar: “Fernando Henrique Cardoso é um sociólogo inteligente. Tão sabido que vai fazer esse mandato para fazer dois. Provavelmente o primeiro de Marco Maciel e o segundo do verdadeiro Fernando Henrique…”

Agora o silêncio. Lá no fundo das matas apenas o canto do uirapuru, enquanto simbolicamente nossos guerreiros preparam três troncos. Os troncos do Quarup. Serão pintados com as cores da natureza, traduzindo o brilho dos olhos. São os olhos do sertanista, do escritor e do antropólogo. Certamente terão o brilho da verdadeira luz, a luz do sol, das estrelas, dos grandes sábios. Depois, lançados nas águas dos rios, partirão pelo caminho da liberdade.

Enquanto isso, no Congresso Nacional, Darcy sorrindo, no seu rito de passagem, deixa sua última marca por um Brasil melhor e chama para seu lugar um representante de outra raça que tanto amava, o negro: o intelectual, e outro guerreiro, Abdias do Nascimento.

Verdadeiramente, era um pequeno grande homem. Poí caxé, Darcy!

Este texto foi escrito por Marcos Terena, liderança indígena, ex-conselheiro da Fundação Darcy Ribeiro, logo após a morte de Darcy Ribeiro, em 17 de fevereiro de 1997, no Jornal do Brasil.