Os Yanomami

Nesse momento, toda a humanidade, toda a opinião pública nacional e mundial está de olho em nós, querendo que o Brasil seja capaz de encarnar, frente aos Yanomami, a face melhor da civilização, não a forma brutal que tem assumido tantas vezes. Aqueles índios são o último grande povo prístino do mundo. A Europa, em sua expansão, destruiu dezenas de milhares de povos, apagando outras tantas caras· do fenômeno humano, com suas línguas, suas visões de mundo, suas culturas próprias, num empobrecimento irreparável das tradições de toda a humanidade.

Hoje, em sua expansão encarnada por brasileiros, ela se defronta com uns poucos povos que sobrevivem, porque estão para além de suas frentes de expansão. Entre eles se destacam os Yanomami, um povo de doze mil almas, talvez mais, vivendo em cento e tantas aldeias, onde conservam uma velha tradição expressa na sua língua própria, na sua cultura, também muito peculiar nas formas de suas casas, que ninguém tem igual, na cordialidade extrema do convívio, que ali se dá entre homens e mulheres e entre adultos e crianças.

Afortunadamente, foram reconhecidos os seus direitos constitucionais à posse das terras em que vivem e que são indispensáveis à sua sobrevivência. Lamentavelmente, sinistras vozes se levantam querendo revogar a demarcação dessas terras. O ardil de que lançam mão é propor que se dê, a cada uma das centenas de aldeias, pequenas ilhas, deixando os garimpeiros e fazendeiros entrarem entre elas. Isto seria destruir todos os liames da unidade tribal, seria levá-los ao extermínio.

O mundo se horroriza ante a perspectiva desse genocídio. Pude ver na Europa como a opinião pública saudou como uma coisa bela o reconhecimento do direito daqueles índios pelo governo brasileiro. Há quem diga que seria uma desnacionalização garantir um grande território indígena em nossas fronteiras. Não é verdade, porque a Constituição atual reconhece o direito dos Yanomami às suas terras, mas não as aliena para que sejam apropriadas como propriedades privadas. Ao contrário, isso ocorreria se fossem dadas aos fazendeiros ou, pior ainda, aos garimpeiros, que rapidamente destruiriam as terras, as águas, a flora, a fauna com o mercúrio, e os índios, com a truculência assassina. Isso tudo para que aquela bela província da Amazônia se torne igual à mata amazônica, despovoada de índios, despovoada até de caboclos, por um sistema econômico que já concentra na cidade a imensa maioria da população vivendo uma vida de miséria.

Pessoas que não se preocupam com o fato de que particulares tenham propriedades de até um milhão de hectares, que as mantêm inexploradas, numa operação puramente especulativa, não estão dispostas a dar aos índios aquilo que é a condição de sua sobrevivência: terras que a nossa Constituição reconhece que são deles. Para isso estão dispostos a levá-los ao extermínio.

Essa postura corresponde à pior tradição brasileira. Temos, felizmente, contra essa tradição da brutalidade, da dureza, uma tradição de trato justo e correto para com os descendentes de nossos ancestrais indígenas. Nossa Constituição oferece à humanidade a cristalização legal do maior empenho de se tratar respeitosamente aos índios, como brasileiros originais. Romper com esse compromisso, quebrando para isso a própria Constituição, como querem tantas vozes políticas dos assassinos de índios, para atender a uma expansão garimpeira, meramente mercantil, ecologicamente destrutiva, seria

um passo atrás, um retrocesso, uma vergonha indelével para o Brasil.

Recorde-se que, suceda o que suceder aos índios, isso já não afeta o destino nacional, como afetaria há dois ou três séculos. Hoje, aconteça aos Yanomami e aos outros índios o que acontecer, não afeta o destino da nação brasileira, mas afeta a honra do Brasil. Esse País nosso, esse povo que somos nós, ou tem honra e respeita esses direitos, orgulhando-se de sua melhor tradição, ou se converte mesmo num covil de assassinos amparados por uma lei truculenta.

Este artigo é um extrato do texto O índio e o brasileiro, publicado inicialmente no livro O Brasil como problema em 1990, hoje na 3ª. Edição. O texto foi republicado na Carta 9, revista temática editada pelo Gabinete do Senador Darcy Ribeiro,neste número, em comemoração ao Ano Internacional dos Povos Indígenas – 1993 – promovido pela ONU,  como Prólogo da coletânea.