Política Cultural

Num balanço de minhas atividades à frente da Secretaria de Ciência e Cultura escrevi certa vez que a cultura é, para mim, o modo singular de um povo exercer sua humanidade: audível, na língua que fala ou na forma que canta; visível, nas coisas típicas que faz; observável, nos seus modos peculiares de conduta. Assim entendida, a cultura é atributo nosso, mas o é também dos xavantes e dos chineses.

Em todas as milhares de modalidades de vivências culturais, podem ser distinguidos certos aspectos da cultura, nos quais é mais ardente a preocupação de criar beleza, de expressar alegria ou de manifestar sentimentos. A estas particularidades é que se atribui, habitualmente, o conceito de forma de expressão cultural. Para muita gente é difícil meter na cabeça que balé e samba, feijoada e xadrez sejam modalidades diferentes de expressão cultural.

Às vezes é útil, ainda que seja sempre perigoso falar de cultura popular e cultura erudita. Gosto de pensar que essas são as duas asas da cultura que, sem vigor em ambas, não voa belamente. É preciso reconhecer que uma não é melhor nem pior, superior ou inferior à outra. São apenas diferentes e, porque distintas, se intercambiam, abeberando-se reciprocamente. Populares são, para nós, as formas livres de expressão cultural das grandes massas, que nos dão seu exemplo maior no carnaval carioca, como a principal dança dramática que jamais se viu. Eruditas são as formas escolásticas, canônicas de expressão cultural, como o balé e a ópera, por exemplo, cultivadas por alguns, vivenciadas por pouquíssimos, mas admiradas por um grande público.

O importante neste campo, como em outros, é não cair em sectarismo. É tão ridículo o populesco, que só tem ouvidos para o seu samba, como o basbaque que só aprecia gêneros e estilos eruditos de expressão cultural desenvolvidos por outros povos, como a ópera ou o balé. Nosso desafio está precisamente em criar, no plano cultural, com fundamento em nossos modos de ser, gêneros equivalentes a eles. Novos gêneros que cultivemos com gosto e, quem sabe, até exportemos. É igualmente importante não nos fecharmos aos gêneros clássicos, hostilizando-os, porque são exógenos. Ganhando o grande público, eles se fizeram, para muitos povos, modos de coparticipação nos valores da civilização a que pertencem. Rejeitá-los seria cair num provincianismo detestável. Reverenciá-los boquiabertos como formas perfeitas e intocáveis, sem a ousadia de recriá-los a nosso jeito, é igualmente boboca.

Dentro desta conceituação de cultura, política cultural não pode ser mais do que o estímulo generoso do Estado para que a criatividade popular e a erudita floresçam, sem nelas jamais interferir. A mão do Estado é sempre uma mão possessa, onde quer que ela queira ditar normas ou impor diretrizes culturais.

Estou orgulhoso do que fizemos na Secretaria de Cultura. No campo dos tombamentos uma atitude nova nos fez sensíveis, tanto à necessidade de preservar peças do patrimônio barroco, desde sempre louvadas, como muitas outras coisas; por exemplo, a Casa da Flor. Outro exemplo é o tombamento de trechos quilométricos da cidade do Rio de Janeiro, para ter a garantia de que as gerações que se sucedam à nossa vejam a cidade com os olhos com que nossos avós a viram. Mais importante ainda, ou mais gozoso, foi promover o tombamento de cem quilômetros de praias, de lagos e de encostas, do Estado do Rio.

Nós as preservamos da depredação dos especuladores não só porque são belas, mas também porque a vocação do Rio é o turismo que um dia nos há de enriquecer. Para tanto só teremos de deixar o mundo ver a maravilha que o Rio é. Um milagre feito à mão por Deus num dia em que Ele, inspirado e alegre, fez uma montanha coberta de mata virgem e a meteu mar adentro formando praias, ilhas e enseadas para mostrar de quanta beleza sua criação é capaz.

Outra iniciativa importante foi a institucionalização do Corredor Cultural, pela cidade do Rio de Janeiro. Uma única Lei municipal preservou, em 1983, 1.300 imóveis do centro tradicional do Rio, garantindo limites adequados de altura para os milhares de prédios vizinhos, cuja renovação é livre. Preservou-se assim a ambiência cultural urbana e permitiu-se a revitalização, orgânica e lenta, do centro da cidade. Isto é o que se vem processando ao longo de mais de 600 licenciamentos de obras, desde então, ao arrepio de todas as metodologias quantitativas vigentes de ordenação do crescimento urbano.

Comparem-se as quantidades: 1.300. imóveis em quatro anos de Corredor Cultural e cerca de 900 imóveis excepcionais, tombados em 45 anos de existência do Patrimônio Histórico Nacional. Naturalmente as qualidades dos dois conjuntos de bens são muito diferentes, e o tratamento que recebem também; mas não há como negar os méritos deste remédio heroico que é o tombamento, quando usado competentemente.

Só nos dói a dor do que não pudemos fazer por falta absoluta de meios. Dói, principalmente, não termos uma televisão. Pode uma Secretaria da Cultura não contar com este instrumento supremo da cultura de massas? Pode o Estado, pode a Nação consentir que a TV seja regida quase exclusivamente como um negócio, dando ao público o que venda mais mercadoria boa ou ruim?

Em compensação, pela dor do que nos falta, tivemos as alegrias do que fizemos de novo, sobretudo a contribuição cultural que demos para melhorar a qualidade da educação pública. O acesso de todo o povo ao domínio da leitura é condição indispensável ao nosso florescimento cultural pleno. Não se pense que ela venha tirar qualquer coisa do vigor de criatividade da cultura popular. Muito ao contrário, pela alfabetização, nosso povo, integrado na civilização letrada em que está imerso, criará muito mais nos gêneros e estilos que cultiva.

Outra alegria nossa, das maiores, foi dar ao Rio uma nova e bela Biblioteca Pública Estadual. Ela funciona por si mesma como um grande centro de cultura, atendendo a milhares de pessoas diariamente, dando-lhes não só livros, mas todos os instrumentos audiovisuais de informação, de estudo e de recreação como os vídeos, filmes e toda sorte de gravações. O mais importante, porém, é que essa grande biblioteca será a central coordenadora de uma rede de centenas de bibliotecas menores instaladas nos Centros Integrados de Educação Pública – os CIEPs -, ao longo de todo o Estado. (Ai, sonhos meus, tantos, desfeitos pela mediocridade alheia …) Através delas daríamos livros, livros a mãos-cheias, a todo o povo. O livro, bem sabemos, é o tijolo com que se constrói o espírito. Fazê-lo acessível, desmonopolizá-lo, é multiplicar tanto os herdeiros quanto os enriquecedores do patrimônio escrito da literatura e das ciências que é o bem maior da cu1tura humana.

Além de funcionarem como bibliotecas, os CIEPs foram planejados para funcionar como instituições polivalentes no campo da animação cultural, proporcionando às comunidades a que servem um polo de vivência, recreação e esporte nos fins de semana, com a introdução dos valores locais como escolas de samba infantis e núcleos folclóricos.

Trouxemos de volta, com a ajuda de Leonel Kaz, a Revista do Brasil, que Monteiro Lobato tornou uma voz da consciência brasileira e que hoje o Rio de Janeiro reassume e devolve a todos os homens de cultura do Brasil.

Um gênero novo de arte surgiu conosco no Rio, graças à criatividade de Carlos Scliar. Não me contentando com as artes plásticas expressas no quadro, no painel, na escultura, no objeto belo, pedi a ele que desse plasticidade em cor e forma a um edifício escolar inteiro. No caso concreto, a ideia foi embelezar uma escola em São Gonçalo que, como num ato mágico, transformou-se numa escola colorida. Belíssima.

No campo da museologia, enorme foi nossa messe. Citemos apenas alguns exemplos. Criamos e inauguramos, com a presença do Ministro da Cultura da França, a Casa França Brasil, para visualizar os cinco séculos de bom convívio que tivemos com os gauleses. (A casa foi reinaugurada depois por uns burocratas infecundos.) Deixamos em montagem o Museu do Carnaval, que dará ao visitante do Rio a visão da beleza esplêndida e do ritmo dos desfiles das Escolas de Samba, em qualquer dia do ano. Concluímos o projeto de criação de um Museu da Civilização Rústica, com o fundamento na qual esses brasis se constituíram.

A Fazenda Colubandê, dignamente restaurada, devia receber uma réplica do melhor mobiliário rústico brasileiro. Ao redor dela, plantamos um enorme pomar com todas as frutas de antigamente. Será um santuário de todas as árvores frutíferas, inclusive de passarinhos, para ver se eles voltam a revoar outra vez.

Lutamos sem êxito – e esta luta vamos retomar – com os ministros da cultura do Brasil e de Portugal para conseguir comovê-los e chamá-los à lucidez de converter o velho Paço Imperial do Rio num Museu da Civilização Luso-Brasileira. Nossa cultura mutante, ameaçada, necessita vitalmente regar essa matriz essencial do nosso ser, tão desprestigiada frente ao apreço circunstancial que se vem dando, ultimamente, às matrizes de alguns grupos neo-brasileiros, que nem tanto.

Alguns desses fazimentos me deram um soberbo sentimento de glória. Insisto em citar o arco com que Oscar coroou o Sambódromo doando à cidade o que será, doravante, seu símbolo. A transformação de uma escola enorme e feia, por Scliar, em prodigioso objeto de arte, criando um novo gênero plástico. A alegria de participar da homenagem que o Brasil prestou, no Teatro Municipal, pleno de público como nunca, a essa grande cantora que é Clementina de Jesus, o que· enraiveceu inumeráveis bobocas. A salvação de cem quilômetros de praias e encostas. A volta de Boal do exílio. A pintura mural pelas ruas. As crianças nos teatros e concertos. A cultura viva. E ainda o Monumento a Zumbi, um bronze de Benim para alegria da negritude.


Texto de abertura na edição especial da Revista do Brasil, em 1985, posteriormente publicado no livro Testemunho, na seção Fazendo, da Edições Siciliano, em 1990.