O orgulho dos Silveira era o presepe do meu avô Olegário. Grande, rico, fantástico, de maravilhosas figurinhas de porcelana. Era montado com panos impregnados de pó de pedra que figuravam uma gruta, ocupando metade da sala. Bem no centro, na frente, sobre a areia branquíssima, ficava a manjedoura com Jesus Menino. Ao redor, Nossa Senhora ajoelhadinha, são José afastado, hirto; e, pelos lados, o que se observava era, segundo os dominicanos, a Companhia de Jesus: um boi, um burro, bodes e cabras. Encimava tudo isso, inscrito em letras de ouro sobre porcelana branquíssima: “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade”.
Por todos os lados havia laguinhos de espelho com os respectivos patos e muitas aves mais. O presepe era montado quinze dias antes do Natal e durava quinze dias mais depois, porque toda a gente de Moc (Montes Claros) queria vê-lo e rezar ajoelhada aos seus pés. Nesse período, os três reis magos iam progredindo a partir de três lados montados em seus cavalos ou camelos no rumo da manjedoura, cada um com sua oferenda: ouro, mirra e incenso.
O melhor para mim e para meu irmão, Mário, era a manhã de Natal, pois íamos buscar embaixo das abas do presepe os presentes que havia para nós. Formidável também era ver de longe o desarme do prcsepe, a retirada cuidadosíssima de cada uma das muitas figuras de porcelana e sua embalagem bem defendida num caixão que ficaria fechado o ano inteiro esperando pelo Natal. Lembro-me ainda do zelo extremo que se punha em tirar a grande faixa de louça e colocá-la em uma caixa comprida entre papel de seda e algodões. Dividido mais tarde entre os irmãos, aquela maravilha se acabou. Restará em alguma parte algum rei, algum bicho, algum santo?
Esse culto se fixou tanto para mim que nunca deixei de simular um presepe onde quer que estivesse, por minha vida inteira. Mesmo quando era um ateu professo, antes de ser como agora, tão-somente à-toa, queria imagens para armar meu Natal. Carreguei comigo um Jesus Cristinho nascente, por onde andei neste mundo.
O melhor dos festejos de Natal de Moc eram as pastorinhas. Havia muitos grupos delas que se organizavam nos arredores da cidade e vinham com seus vestidos fantasiosos e fitas coloridas cantar seus próprios cantos à porta das casas da gente remediada ou rica. À minha casa não podiam faltar, pela beleza do presepe que elas admiravam mais que ninguém. Fiapos dos seus cantos ainda se enrodilham na minha memória.
Viemos de longe
Viemos de Belém
Para o Deus Menino adorar
Do varão nasceu a vara
Da vara nasceu a luz
Da luz nasceu Maria
De Maria o Bom Jesus
Levei uma surra de mamãe, tremenda, numa noite em que fiquei até de madrugada acompanhando um grupo de pastoras pelos arredores da cidade. Ela tinha mobilizado meus tios, a polícia e já ia pedir socorro aos Ribeiro quando eu apareci, lampeiro. Era já minha vocação de etnólogo e eu nem sabia.
Essa é a religiosidade festiva que aprendi. A das festas, das folias, dos santos milagreiros. Um para cada especialidade: casar gente, achar chave perdida, curar doentes, qualquer coisa. Sobre todos eles reinava a Rainha do Céu, Nossa Senhora. Mil vezes mais importante que Deus, porque o tivera na barriga. Milagreira como ela só, em suas várias encarnações: da Assunção, que foi inteirinha para o céu, do Perpétuo Socorro, com sua cara eslava, que era protetora de mamãe e muitíssimas mais, enchendo de fé e esperança os corações das mulheres.
Deus mesmo não tinha muita importância. Ou era importante demais para se ocupar dos probleminhas do povo de Montes Claros. Suas encarnações ostentosas me atiçavam a curiosidade. Para mim o melhor era o Deus Menino que renascia todo ano no Natal. Soturno, mas assustador, era o Senhor Morto das procissões de Sexta-Feira Santa, acompanhado por gente encapuzada batendo matracas. Do Deus Pai eu não sabia nada. O divino Espírito Santo não. Este era visível na pomba que se punha em varas, acima de tudo nas procissões e sobretudo nas folias, que era a maior animação da religiosidade antiga.
O movimento da ortodoxia romana comandado pelos padres de batina branca que nem se casavam, falavam mal português e só sabiam perseguir as formas tradicionais de religiosidade popular quase matou o catolicismo em Montes Claros. Nos espaços abertos por eles se multiplicaram o espiritismo, o candomblé e ultimamente o protestantismo, cada vez mais vigorosos.
Este texto foi extraído da primeira parte do livro Confissões, publicado pos-mortem pela Companhia das Letras, em 1997.