No exilio prossegui também na militância política, tanto junto com meus companheiros brasileiros, especialmente Jango e Brizola, como junto aos governos latino-americanos que mais se esforçaram para romper com a dependência e com o atraso.
No Chile, trabalhando como assessor de Salvador Allende, me vi posto naquela terra de ninguém da vida social que é onde me sinto mais a gosto: entre a realidade da história de um povo numa instância de transformações revolucionárias e a utopia concreta de seu próprio projeto de transfiguração.
Nunca participei de um empreendimento tão radical e tão generoso. Ali repensávamos com ousadia o mundo que era e planejávamos, ainda mais ousadamente, os mundos que deviam ser. Allende tentava uma façanha equivalente à de Lenin como líder da Revolução Russa. Rompendo com os clássicos – que postulavam a revolução de Marx como o coroamento e a superação do capitalismo mais maduro-, ele procurava encontrar os caminhos do socialismo do atraso, através da ditadura de proletariado, que construiria o desenvolvimento econômico-social onde o capitalismo fracassou.
A tentativa de Allende era ainda mais ousada. A partir da precária sociedade chilena, mas dentro de uma conjuntura histórica excepcionalmente favorável, ele buscava as vias da edificação do socialismo em liberdade, dentro de um regime pluripartidário.
Vale dizer que o socialismo que deveria florescer na França ou na Itália pela unificação dos seus grandes partidos de esquerda – o socialista e o comunista – queria medrar no Chile, pelas mãos de Allende. Nós, guiados por sua lucidez e temeridade, pensávamos o impensável até então, enfrentando, de um lado, a direita que conspirava e, do outro lado, a esquerda desvairada pela obsessão de converter a vida chilena no caminho cubano.
Mesmo hoje, passados tantos anos e depois do desastre, do assassinato de Allende e do drama em que mergulhou o povo chileno, continuo convencido de que ele teve uma boa chance de acertar. Suficiente para que tentasse. Afinal, só não erra quem jamais tenta acertar, e só acerta quem ousa, aceitando a margem de risco que sempre existe. O certo é que a direita chilena e a reação internacional, mancomunadas contra o Chile socialista, jamais tiveram dúvidas de que, sobrevivendo dois anos mais, Allende consolidaria o socialismo em liberdade, abrindo perspectivas para a revolução latino-americana.
Fracassamos, é certo, mas ficou como uma das façanhas maiores de nosso tempo – ao lado da ousadia temerária do Che, que dignificou as esquerdas que estavam todas burocratizadas – a lição inesquecível de que o socialismo em liberdade é alcançável e um dia há de concretizar-se. Com ele saltamos do funcionário da revolução ao herói histórico. (Testemunho, Editora Record, 2022, p.248-249)
* * * * * * *
Neste quadro, eu fui procurado em Santiago por um dos mais altos intelectuais políticos da América Latina, o peruano Carlos Delgado. Ele me trazia um convite do presidente Velasco Alvarado para “ajudar a pensar a revolução peruana”. Nada podia ser mais tentador para mim que observar e conviver com militares que haviam trocado de pele e realizavam uma profunda revolução social no Peru. Tinham feito a reforma agrária mais profunda de que se tem notícia, garantindo a posse das terras, depois de séculos de esbulho, às populações incaicas da montanha peruana. Haviam tomado e reorganizado a imprensa, destinando cada jornal, rádio e televisão a uma corrente corporativa, como os camponeses, os operários fabris etc. Estavam reordenando a propriedade para garantir a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, enquanto acionistas delas e muita coisa mais. Aceitei logo transferir-me para o Peru, para ajudar no que passei a chamar, por brincadeira, de socialismo “cibernético”
Sair do Chile me dava pena. Allende me pedia que ficasse, mas concordava comigo em que não se abria ao Brasil nenhuma perspectiva de alcançar o socialismo por via eleitoral. Era pensável, entretanto, um nasserismo, em que os militares deixassem de ser o braço armado de classes dominantes retrógradas para passar ao papel de renovadores de sua sociedade.
Já estava de partida para o Peru, quando Allende me chamou para jantar outra vez com ele e sua equipe ministerial. Ao fim do jantar, na conversa que se animou entre todos, concordamos que a economia tinha dado o que podia à Revolução Chilena. Cabia agora à política entrar em cena para equilibrar o quadro. Ocorre, porém, que só os comunistas concordavam em dar um passo atrás na política. Toda a esquerda radical só queria um passo à frente.
Isso ocorreu três meses antes do golpe militar que derrubou Allende. Conversando sobre essa possibilidade, o presidente me disse que, na eventualidade de um levante, ele chamaria o povo às ruas e o manteria ali pelo menos por 24 horas. Despois disso, me disse: “Só os comunistas continuarão na rua.”
Simultaneamente à mobilização popular, Allende disse que necessitaria do apoio de alguma força do Exército e da força total dos carabineiros, um corpo policial bem-armado e eficiente. O golpe militar foi dado precisamente aí, com o assalto das Forças Armadas aos carabineiros e sua anulação, ao mesmo tempo que atacaram os palácios e encurralaram Allende em La Moneda.
Nessa conversa última, Allende reiterou para mim sua afirmação de que a ele não derrubariam no berro, como fizeram com o Jango, e concluiu: “Só sairei de La Moneda coberto de balas”. Assim foi. (Confissões, Companhia das Letras, 1997, p. 415-417)