Saudades de Berta

Não estranhe, sobretudo, que eu me refira a você, que me lê, em algumas páginas dos diários. Eles foram escritos como uma carta a minha mulher, Berta, que era minha amada. Será a carta de amor mais longa que jamais se escreveu.

Então, no tempo deste diário, éramos jovens ou apenas maduros. Envelhecemos depois, uma pena. Saltamos já a barreira dos setenta. Ao fim, fomos atingidos por dois tiros: câncer. Estamos ambos lutando, cada qual contra o seu. O de Berta a pegou na cabeça, justamente na área da fala. Não pode ser extirpado, porque ela perderia a memória e o ser. Viraria um vegetal em coma perpétuo. Mas aguenta bem. Voltamos até a namorar, depois de vinte anos de separação. Eu a beijo na boca e prometo casar com ela de novo.

Meu câncer, o segundo que tenho, é melhorzinho. Salvei-me do primeiro vinte anos atrás, arrancando o pulmão descartável e jogando fora. Agora, tenho câncer de próstata. Lamentavelmente, quando descobrimos, já tinha dado metástase, carunchando minha caveira. Não podia ser operado. O tratamento é pior do que a doença. Tão ruim que me fez internar numa UTI, onde morreria se não fugisse. Berta e eu mantemos o riso atarraxado na cara e os corações abertos às alegrias alcançáveis. Tudo bem. (D.R. Prefácio, Diários Índios, p. 14)

20/nov./1949. Berta, abro este diário com seu nome. Dia a dia escreverei o que me suceder, sentindo que falo com você. Ponha sua mão na minha mão e venha comigo. Vamos percorrer mil quilômetros de picadas pela floresta, visitando as aldeias índias que nos esperam, para conviver com eles, vê-los viver, aprender com eles. (D.R. Primeira expedição, Diários Índios, p. 21)

5/dez./1949. Há um mês, precisamente, saí de casa, despedi-me de você numa tarde para tão longa viagem. Segundo meus cálculos, já devia estar, nessa altura, vivendo numa barraca junto de uma aldeia urubu, mas a escassez de transportes nessas zonas frustra todos os otimismos da gente. Ainda estamos enterrados em Viseu. Somente hoje chegou o pacote de filmes que o Foerthmann deixou para trás e ainda tivemos de esperar o preparo do batelão para seguirmos. (D.R., Jararaca, Diários Índios, p. 47)

31/dez./1949. Então, Bertinha querida, o ano está acabando. Tanta gente, por aí, cultuando o Ano Novo. Você, provavelmente, sairá com Matilde para verem o movimento e até podem ir ao cinema. Eu terei minha diversão aqui com o pajé, se ele quiser cantar. Não tenho nenhuma notícia sua desde o dia 16 do mês passado e, talvez, fique ainda muito tempo sem cartas. Desejo muito que tudo corra bem para você e que o Ano Novo seja um dia alegre. (D.R., Jararaca, Diários Índios, p. 99)

13/jan./1950. Este diário é a carta mais longa que jamais se escreveu. Você bem poderá orgulhar-se de ter recebido uma das mais grossas “epístolas” da história. Entristeço-me, um pouco, de não poder fazer o trabalho aqui; temo que Piahú não seja tão sugestivo e essa gente convalescente não possa apresentar o mesmo vigor e o gosto de viver que a de Ianawakú. (D.R. Ianawakú, Diários Índios, p.159)

27/fev./1950. Lendo este diário, caí no sono. Sonhei não sei quanto tempo em milagres. Sonhava com você, Berta, que estava lá longe, no Rio, jovem e bela. Seria? Estudava e trabalhava quando cheguei, entregando estes diários e mostrando uns artefatos lindos que levava. Acordei. Saudades. (D.R. Gente, Diários Índios, p. 246)

23/mar./1950. Agora estou tratando de preparar o presente que vou levar a você. Não sei se dará certo, quero fazê-la experimentar o prato paraense mais gostoso, a comida que tive à mesa aqui nos melhores dias dessa viagem, uma conserva de fígado e ovos de jabuti. Vamos ver se você gostará. (D.R. Guajá, Diários Índios, p. 286)

25/mar/1950. Recebi correspondência, inclusive uma carta sua, de 7 de fevereiro, dando tão desoladoras notícias. Como, então, o pessoal do SPI se aproveita, novamente, de nossa ausência para outra estocada pelas costas. Isso é o que se pode esperar deles. De algum modo, representamos a consciência do índio no Serviço e nossa presença é um clamor por novos rumos que encaminhem essa máquina nefasta a seus fins. […] Preciso voltar ao Rio com urgência e de qualquer modo para ver como fica isso e procurar uma solução, antes que seja tarde demais. Cada vez que nos acontece uma dessas, meu impulso é mandar essa gente às favas, dizer-lhes umas verdades e deixar o SPI. Mas, agora, mais do que nunca, preciso de calma. De qualquer modo, preciso regressar. (D.R. Conflitos na aldeia, Diários Índios, p. 288)

6/abr/1950. Recebi uma carta sua, Berta, mas é de 28 de janeiro; anterior, portanto, à última que me chegou ao posto. Deixou-me ainda mais apreensivo, porque já nessa você me falava das imundícies que essa gente do Serviço vem fazendo. Seguirei o mais depressa que puder para ver se consigo atalhar seus golpes baixos. […] Alma ainda manda dizer que você foi procurá-los várias vezes pedindo providências para nós. Não gosto disso, eles não merecem qualquer atenção sua e bem podem tratá-la com brutalidade, o que me obrigaria a sujar-me esganando um daqueles ratos. Mas deixemos isso, você foi lá para me ajudar, porque está sempre preocupada comigo, está certo. Não posso tirar esse caso da cabeça. (D.R. São José do Gurupi, Diários Índios, p. 296)

11/abr/1950. Combinei detalhadamente com João Carvalho minha segunda expedição. Voltarei às aldeias dentro de um ano, mas entrarei no território kaapor pelo lado maranhense. Esse volteio nos permitirá visitar inúmeras aldeias de acesso difícil pelo Pará. Lá vou eu, voltando e já querendo regressar. (D.R. Planos de retorno, Diários Índios, p. 299)

Extratos de textos escritos por Darcy em forma de diário, dirigidas a Berta Ribeiro, sua esposa, durante a sua primeira expedição para pesquisa dos índios Urubu-kaapor, em 1949, publicados em Diários Índios, pela Editora Global, em 2ª. edição. O título deste texto foi atribuído pela Fundação Darcy Ribeiro.