TERRA

O que se chama reforma agrária é tão só a revisão da lei fundiária, vigente no Brasil há um século e meio. Lei que não reconhece o direito de posse, como ocorre na América do Norte, mas consagra os poderes burocráticos e cartoriais de esbanjar as terras públicas.

O desafio que enfrentamos é reformar essa lei para reverter ao domínio público, como fundo de colonização, toda a imensidão de terras tidas e havidas pelo latifúndio improdutivo, mas não usadas agora por eles, nem utilizáveis em qualquer tempo, tão incomensuráveis são.

A imensa maioria desses latifúndios foi obtida através de grilagens e chicanas cartoriais, sem qualquer base de legalidade ou de legitimidade.

São acatados e mantidos porque a ordem vigente, com seu sistema de elaboração de leis e de garantias de justiça, existe de fato é para manter e consagrar esses privilégios, doa a quem doer.

A Constituição de 1946 determinava que nenhuma propriedade acima· de 10 mil hectares teria registro sem autorização prévia e expressa do Senado.

Mas o Senado nunca piou sobre essa matéria. Viu os fundos de Goiás ·e Mato Grosso serem apossados em enormes glebas. E está vendo o mesmo ocorrer no Pará e na Amazônia, em concessões de centenas de milhares, e até de mais de 1 milhão de hectares, sem jamais se pronunciar.

A única ativa contra esse despautério, que é o responsável principal pela fome e pelo desemprego em que se· estiola nosso povo, é a ação dos grupos extralegais, mas legítimos, dos sem-terra, que invadem terras incultas.

Eles já somam milhares e crescem continuamente. No limite, frente à incapacidade da Justiça para coactá-los e contê-los, esses posseiros tendem a aumentar tanto que até podem compelir o Exército a cometer chacinas muito maiores que as de Canudos e do Contestado para garantir o latifúndio. Fazendo-o agora, sem qualquer disfarce ou apoio, porque a opinião pública urbana já é francamente favorável aos sem-terra.

Não é improvável que os próprios fazendeiros de propriedades produtivas, sentindo-se também ameaçados, acabem por pressionar o Legislativo, o governo e a Justiça para promoverem uma reforma agrária séria e urgentíssima.

Para isso, no plano legal, bastaria incluir um princípio novo na Constituição, em que andam mexendo tanto e para nada. Incluir ali que a ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade.

Acrescentando que lícita ou legítima é a posse do equivalente a quatro vezes a área efetivamente utilizada pelo dono, voltando o restante ao domínio público.

Se nada for feito – nem a chacina nem a reforma -, os sem-terra resolverão o problema. Engrossados pelas massas urbanas, ainda ruralizáveis, eles são a força irresistível de que necessitamos para meter o povo na história do Brasil.

Dizem os idiotas que não adianta fazer reforma agrária porque sem muita assistência técnica e muito subsídio o pequeno lavrador não conseguirá nada.

É mentira. Onde prevalece a pequena propriedade, o povo come mais e vive melhor. A função da pequena propriedade é dar emprego aos milhões de desempregados. É dar segurança e alegria à maioria das famílias brasileiras, para produzirem o que comem, vendendo barato as sobras.

Este texto foi publicado na coluna de Darcy Ribeiro na Folha de São Paulo em 9 de outubro de 1995. Neste ano, em que o MST completava 10 anos, o movimento liderou uma série de invasões, no Pontal do Paranapanema, tornando-se matéria de repercussão nacional.