TRANSFIGURAÇÃO ÉTNICA*

Em 1952, a UNESCO, recém-nascida, se tomou de entusiasmo por duas lições que o Brasil podia dar ao mundo. Nossa democracia racial, fundada na livre mestiçagem de índios, negros e brancos. E a não menos assinalável assimilação dos povos indígenas que, depois dos primeiros contatos com as fronteiras da civilização, nela se fundiram, indiferenciáveis.

Mas a UNESCO não ficou na proclamação desses avanços brasileiros. Montou uma vasta pesquisa de campo para verificar factualmente uma e outra. Organizou para isso várias pesquisas de observação direta. Uma delas, a cargo de Charles Wagley e Thales Azevedo e suas equipes, dedicou-se ao estudo das relações inter-raciais na Bahia. Outra foi montada em São Paulo a cargo de Roger Bastide e de Florestan Fernandes, para observar ali as relações de brancos e negros. Urna terceira, a cargo de Luiz de Aguiar Costa Pinto, focalizou as relações raciais no Rio de Janeiro. Mais uma em Pernambuco, sob a coordenação de Renée Ribeiro. Nos quatro casos as conclusões científicas foram unânimes. Não havia nenhuma democracia racial nas respectivas áreas. Os negros e mulatos eram e são objeto de dominação, discriminação e vítimas de preconceitos cruéis.

Nesse quadro, coube a mim o estudo da assimilação dos índios na sociedade brasileira, que, pelo simples convívio, se transformariam em brasileiros autênticos, esquecendo suas origens. Também aqui o resultado foi decepcionante. Em todos os casos que pude observar, nenhum grupo indígena se converteu numa vila brasileira. É certo que, corno os historiadores indicam, diversos locais de antiga ocupação indígena deram lugar a comunidades neobrasileiras. Não houve, porém, nenhuma assimilação que transformasse índios em brasileiros. Os índios foram simplesmente exterminados através de várias formas de coação biótica, ecológica, econômica e cultural Seu antigo habitat foi ocupado por outra gente, com a qual eles nunca se identificaram e que cresceu com base em outras formas de adaptação ecológica, tornando-se rapidamente independente de qualquer contribuição da comunidade indígena.

Só se contava até então com a abordagem da aculturação, visivelmente

incapaz de explicar o que acontecia com as culturas postas em confronto, particularmente com as culturas de nível tribal, alcançadas pelas fronteiras da civilização. Impotente também para explorar aquele contexto importantíssimo de relações humanas, para explicar como as etnias e as nações nascem e se transformam. Isso é o que proponho fazer na minha teoria da transfiguração étnica.

Terminada a pesquisa de campo e o estudo dos arquivos do Serviço de Proteção aos Índios, remeti meu relatório à UNESCO, que foi muito bem recebido. Tanto que Alfred Métraux, que decidiu traduzi-lo ele mesmo, contratou sua edição pela Editora Plom, de Paris. Tive que proibi-lo energicamente, porque achava que poderia melhorar esses estudos. O mesmo aconteceu com Charles Wagley e Marvin Harris, que, com base no relatório à UNESCO, publicaram uma vasta síntese desses estudos nos Estados Unidos. Eu me guardei. Publiquei apenas artigos escassos. Me guardei, sabendo que precisava de mais tempo para gerar uma teoria explicativa, substitutiva do que era disponível então, que eram os estudos de aculturação. Só anos depois, nos vazios de tempo do meu exílio no Uruguai, retomei meus estudos e elaborei meu livro Os índios e a civilização.

Nele demonstro que a integração dos índios às frentes econômicas que avançam sobre eles constitui uma integração inevitável, no sentido de forçá-los a produzir mercadorias ou a se vender como força de trabalho para obter bens que se tornam indispensáveis, como as ferramentas, os remédios e alguns outros. Mas essa integração não significa assimilação. Mesmo quando perdem a língua e ainda quando se completa o que se poderia chamar de aculturação, ou seja, mesmo quando eles se tornam quase indistinguíveis do seu contexto civilizado, ainda assim mantêm sua auto-identificação como indígenas de um grupo específico, que é seu povo.


Demonstrei, então, que havia certa tendência para que alguns grupos indígenas sobrevivessem às várias pressões exercidas sobre eles. Hoje, trinta anos depois, posso afirmar que os índios estão até aumentando de número, porque saltaram de menos de 100 mil para mais de 300 mil. Isso significa que no futuro vai haver mais índios do que hoje. São remanescentes desse processo secular e terrível de expansão da civilização europeia lançando-se através da violência e ardis sobre os povos indígenas que encontrou por todo o mundo, provocando sobre eles um genocídio e um etnocídio de proporções imensas, os mais vastos da história humana.

A pesquisa da UNESCO sobre a assimilação dos índios do Brasil me levou a revisitar ou visitar, pela primeira vez, vários grupos indígenas, nos quais esperava surpreender outras faces da transfiguração étnica. Voltei a conviver, por exemplo, com os Bororo, que depois de um século de catequese feroz mantêm seus cultos e ritos. Voltei, também, às nascentes do Xingu, aquela babel de povos falando línguas diferentes, mas fundidos numa só cultura-base que define seus modos de prover a subsistência, de conviver, de pensar e de fazer. Fui ver também os Xokleng do Sul do Brasil, um povo que percorreu todo o caminho da aculturação, mas permaneceu ele mesmo, mantendo intocada sua identificação étnica, expressando-a tal como é possível numa área de colonização teuto-brasileira.

Essas novas observações diretas, somadas ao conhecimento íntimo que eu tinha de vários povos indígenas que estudei detidamente, como os Kadiwéu do pantanal e os Kaapor da Amazônia, formaram um painel representativo do espaço e das formas da transfiguração étnica. Foi nessa base de observações diretas e em toda a bibliografia pertinente, bem como na vasta documentação que me foi acessível, que propus o conceito de transfiguração étnica, ou seja, a compreensão de que as culturas são imperativamente transformadas no confronto de umas com as outras. Especificamente no caso dos povos indígenas com a civilização. Mas suas identificações étnicas originais persistem, resistindo a toda sorte de violência. Onde os pais podem criar os filhos dentro de sua tradição, a comunidade indígena sobrevive. Isso ocorre mesmo nas condições mais extremas de compressão, como sucedeu a alguns grupos indígenas do vale do São Francisco. Ali, eles foram desalojados de suas terras e obrigados a perambular por décadas como mendigos maltrapilhos, mas, ainda assim, continuaram sendo índios por sua auto-identificação com uma comunidade que vem de tempos imemoriais e os reconhece como seus membros. A transfiguração étnica consiste precisamente nos modos de transformação de toda a vida e cultura de um grupo para tornar viável sua existência no contexto hostil, mantendo sua identificação.

*Este texto é um extrato do livro Confissões (p.190-193) publicado pela Companhia das Letras em 1997. Já havia publicado texto com mesmo título e teor, mas não o mesmo, no livro “Testemunho” (p.44-46), publicado pela Edições Siciliano em 1990. Outra versão com o mesmo título em texto mais formal está no livro “O Povo Brasileiro “(p. 257-265), publicado pela Companhia das Letras em 1995.