O Ministro Rangel Reis declarou à imprensa que pretende processar-me através do Procurador-Geral da República, em razão de minhas declarações em defesa dos índios na última reunião da SBPC, em São Paulo. Quero dar aqui maiores elementos e razões ao ministro para processar-me ou – o que seria melhor – para que se capacite do triste papel que está fazendo e volte atrás.
Ninguém pode duvidar de que eu não tenha nada contra nem a favor do Senhor Rangel Reis, que eu nem conheço. Tenho, porém, todas as razões para me opor energicamente à ação nefasta do Ministro Rangel Reis, que se serve dos poderes do Estado para agredir e hostilizar aos mais desamparados e carentes dos brasileiros, que são os índios. Penso mesmo que cada um de nós deveria, se pudesse, processar o Ministro Rangel Reis, pelo menos junto à opinião pública, por infidelidade às nossas tradições indigenistas. O Ministro Rangel Reis é hoje, no Brasil, uma espécie de anti-Rondon. Como tal, em lugar de colocar o Estado ao lado dos desamparados e oprimidos que são os índios, se põe na defesa dos tantos inimigos particulares que os índios têm em quantos invadem seus territórios, desrespeitam suas comunidades e cobiçam suas terras.
RANGEL: INIMIGO PÚBLICO DOS ÍNDIOS
O Ministro Rangel Reis é, hoje em dia, sem sombra de dúvida, o inimigo público nº 1 dos índios do Brasil. Aliás, ele faz jus a esse título há muito tempo. Pelo menos, desde a sua posse, quando começou a firmar doutrina anti-indigenista com uma desfaçatez que faria vergonha a qualquer pessoa preocupada com valores humanísticos. Com efeito, logo depois de assumir o Ministério do Interior, ele declarou que dentro de vinte anos não existirão mais índios no Brasil. Provocou, com essa afirmação intempestiva, um grande escândalo na opinião nacional e internacional, que indagava como acabariam os índios e se a intenção governamental era exterminá-los.
Mais tarde, o mesmo Ministro afirmou, também com grande repercussão na imprensa que, ainda durante o atual governo, as reservas indígenas brasileiras seriam extintas. Também, então, o escândalo foi grande no Brasil e lá fora. Perguntavam todos se a intenção ministerial era tirar dos índios a posse das terras que eles ocupam e que são indispensáveis à sua sobrevivência; se ele não buscava, dessa forma, acabar com as próprias comunidades indígenas. Como era inevitável, essa proposição foi interpretada como uma política etnocida, ou seja, de destruição propositada das comunidades indígenas pela negação das suas condições mínimas de sobrevivência.
Agora, o Ministro Rangel Reis reafirma suas posturas anti-indigenistas com o maior estardalhaço. Ameaça, nada mais nada menos, do que fazer o Presidente da República firmar o Decreto Rangel Reis, que regulamentaria a emancipação das comunidades indígenas.
A afirmação requer esclarecimentos porque emancipação, para muita gente, significa liberdade, alforria. Quererá o ministro alforriar os índios de tantas servidões que pesam sobre eles? Quererá o ministro libertar os índios de todos os que os acossam, os prejudicam e querem usurpar seus bens? Não. Aparentemente, a expressão emancipar é usada pelo ministro com o propósito exatamente contrário. A emancipação dos índios da tutela orfanológica do Estado, tal como está sendo projetada pelo ministro – e tal como se expressa na minuta do referido decreto – representaria nada menos do que conduzir os índios compulsoriamente à condição de completa orfandade. Eles seriam, doravante, órfãos também da proteção que lhes devem os poderes públicos.
Frente a essas posturas de sua excelência, o sr. Ministro do Interior, todos nos perguntamos por que tamanha animosidade contra os índios? Qμal é a raiz dessa predisposição tão firme e reiterada de hostilizá-los, que já inquieta e assusta a todas as tribos indígenas que estão em contato com a civilização? São inúmeras as declarações que conseguiram chegar à imprensa, sobre a inquietação que lavra pelas aldeias. Nós, antropólogos, missionários, indigenistas, que temos contato direto ou indireto com os índios, estamos escutando frequentemente as vozes angustiadas dessa inquietação. Os índios se perguntam: – O que é isso de nos emancipar? Que pretendem com isso? Suspeitam que atrás disso esteja uma outra tentativa de esbulho e de usurpação do pouco que lhes resta.
Todos nos esforçamos em vão para interpretar as motivações do sr. Rangel Reis. Qual é a raiz dessa sua predisposição anti-indigenista tão firmemente defendida e tão escandalosamente proclamada? Uma causa frequente de animosidade aos índios – não digo que do ministro, mas que se encontra por aí – se assenta numa espécie de complexo de inferioridade daqueles idiotas que se envergonham muito de serem nativos de um país tropical que tem cobras, feras e índios. São os mesmos que não gostam dos negros, nem dos mulatos. Estará nesse caso o Ministro Rangel Reis? É impossível que esteja! Como um homem informado, ele deve saber que os Estados Unidos têm cerca de 2 milhões de índios (700 mil deles vivendo em reservas), enquanto nós nem chegamos a ter 200 mil. Por que tanta vergonha de ter índios?
Outra causa frequente da hostilidade aos índios reside na ideia estapafúrdia de que eles sejam um obstáculo ao progresso. Essa opinião tão repetida não resiste, porém, à menor crítica. Os índios são tão poucos em relação à massa da população brasileira de 120 milhões de habitantes que, suceda o que lhes suceda, eles já não afetam o destino nacional, nem atingem ao “milagroso” progresso nacional. Em séculos passados, quando os índios eram 5 milhões, qualquer ação indígena hostil à civilização podia torná-la impraticável. Já em 1800, quando os brasileiros eram 2 milhões e os índios 1 milhão, lhes era improvável opor resistência séria à expansão civilizatória. Hoje em dia, essa oposição é totalmente impossível. Os índios afetam, e afetam profundamente é a honra nacional. O que façamos com eles – sobretudo, o que façamos contra eles – o faremos frente a uma opinião pública mundial, acesa e desperta para esse problema, profundamente preocupada com ele. Essa preocupação se expressa hoje em reuniões e assembleias de vários órgãos das Nações Unidas, e se espelha na imprensa do mundo inteiro. Isso significa que as ações do sr. Rangel Reis, Ministro do Interior, não repercutem apenas nas aldeias perdidas do interior do Brasil, ou nos toldos desses pobres índios que vivem ilhados em meio à sociedade nacional. Elas repercutem nas maiores capitais do mundo, onde multidões se perguntam se o povo brasileiro não tem dignidade suficiente para assegurar aquele mínimo de que necessita essa parcela ínfima da sua população e que pede tão pouco.
Se nós tivéssemos dado aos índios do Brasil terras proporcionais àquelas que foram garantidas pelos governos dos Estados Unidos da América do Norte, os índios teriam, no Brasil, territórios que somariam uma área muito superior à do estado de São Paulo. Na verdade, todas as terras indígenas do Brasil somadas, talvez não alcançassem um décimo daquela área. Ou seja, nossos índios são muito menos numerosos que nos Estados Unidos, e têm uma parcela muito menor do território nacional. Comparações desse tipo, com respeito aos Estados Unidos ou ao Canadá, se fazem no mundo inteiro, por uma opinião pública atenta a cada ato que possa ser considerado como etnocidiário. Quer dizer, hostil à comunidade indígena e negatório de seu direito de viver segundo seus costumes ou de mudar a seu próprio ritmo, sem sofrer vexames, compulsões nem opressões. Ou, o que é mais grave ainda: ações que possam ser consideradas como genocidas, no sentido de retirar às populações indígenas ou a qualquer grupo indígena tomado em particular, aqueles requisitos mínimos indispensáveis à sua sobrevivência.
Este texto relaciona-se à participação de Darcy Ribeiro na 30ª reunião anual da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência/SBPC, realizada na Universidade de São Paulo em julho de 1978. Darcy chegara há pouco do seu terceiro exílio e fora convidado para participar da mesa de debate intitulada A Questão Indígena, juntamente com os antropólogos Lux Vidal, Carmen Junqueira, Shelton Davis e Dom Tomás Balduíno. Darcy Ribeiro dirige suas críticas ao Ministério do Interior ao qual a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) estava vinculada. Este texto está no livro Ensaios Insólitos, publicado pela Editora Global em 2015.