Universidade, para quê?

Este discurso, pronunciado pelo primeiro reitor da UnB, Darcy Ribeiro, durante a cerimônia de posse do reitor Cristovam Buarque, em 16 de agosto de 1985, foi publicado pela primeira vez no livro O Brasil como Problema, em 1990, pela Editora Siciliano; o discurso veio a público posteriormente na Revista Carta no 12, editada pelo Senado Federal em 1994; no livro O Brasil como problema, foi reeditado em 1995, pela Editora Francisco Alves, e novamente em 2015 pela Editora Global. O discurso faz parte da coletânea de textos de Darcy Ribeiro no livro Educação como Prioridade, organizado por Lúcia Velloso Maurício e publicado pela Editora Global em 2018.


Meu caro Reitor Cristovam Buarque

Não lhe dou o título de Magnífico Reitor porque jamais o quis para mim. A propósito, recordo o dia em que, estando em Goiânia, na inauguração de uma escola, o diretor, no seu discurso, saudou o governador como Excelentíssimo Senhor; saudou, depois, o bispo como Vossa Reverendíssima. Devia, então, me saudar como Magnífico Reitor, mas a palavra lhe faltou. Ele titubeou e, afinal, disse: Esplêndido Reitor.

Esplêndido Reitor Cristovam Buarque,

Todos os que falaram até agora falaram sentidamente num diapasão que nos emocionou. Eu os ouvi de coração arfante. Cheguei a pensar que devia ter tomado algum tranquilizante para falar mais calmo, para não me deixar empolgar demais ou para não ficar trêmulo de voz. Para mim, perdoem que o diga, este dia, esta hora de renascimento da UnB, é mais dia, é mais hora do que para qualquer de vocês. Este Auditório dos Dois Candangos … Há 22 anos eu lhe dei esse nome. E dei no dia em que esta parede aqui de trás desabou, enterrou, soterrou dois jovens candangos, bem onde estamos sentados. Eram dois obreiros humildes, de tantos que vieram de toda a parte edificar Brasília e aqui não puderam ficar. Naquele dia, senti que, para recordá-los, devíamos chamar esta sala do Auditório dos Dois Candangos, [ … ] os verdadeiros fundadores da Universidade de Brasília. A velha equipe da SBPC[1], sem a qual não

haveria nossa universidade, tal qual ela foi, tal qual ela é e há de ser. Era preciso que o Brasil tivesse gerado e formado previamente, formado muito bem, algumas centenas de cientistas e pensadores, cobrindo todos os campos do saber e das artes, para que o Brasil ousasse, como nós ousamos, repensar a universidade desde a raiz. Nós sabíamos que nossa tarefa-desafio não era fazer outra universidade-fruto, resultante de um desenvolvimento já cumprido, como será a Sorbonne, por exemplo. Precisávamos de uma universidade-semente, capaz de gerar um desenvolvimento que o país não tem. Para tanto, é evidente que as Sorbonnes, por mais vetustas que sejam, não nos serviam. Tanto mais porque elas já então se criticavam, descontentes consigo mesmas.

A velha universidade estava em crise. Não tinha padrões estruturais ou modelos operativos a nos oferecer. Éramos, pois, livres e estávamos desafiados a repensar. A repensar a universidade como instituição. Inumeráveis foram os encontros informais, muitíssimas as reuniões formais daquela equipe da SBPC. Presentes quase sempre estavam Leite Lopes, Tiomno, Herón, Nachbin, Haiti, Cordeiro, Moojen, Danon, Gottlieb, Carolina, José Reis[2] e tantos, tantíssimos mais. Que calorosas discussões tivemos, que polêmicas profundas travamos, que discussões de ideias as mais díspares, que coragem de pensar, que predisposição a não copiar, que temeridade, sobretudo, de recusar-se à bobice, de ficar contente com pequenas façanhas: uma odontologia boazinha, um cursinho bem bom de bioquímica numa universidade que não tinha biologia nem química.

Nós nos recusávamos a aceitar a universidade de mentira que se cultivava no país, tão insciente de si como contente consigo mesma. O que ela gostava era de fazer cerimônias solenes, em que meu amigo, o reitor Pedro Calmon, dizia aplaudidíssimos discursos de contentamento pleno com a bobaginha que tinha e que chamavam “universidade brasileira”.

Por que extraordinário milagre o preclaro presidente Juscelino Kubitschek deu a nossos descontentes a tarefa de conceber a universidade nova na nova capital? Nós éramos, então, a consciência clara, profunda – a que você, meu caro reitor e sua equipe, têm que encarnar hoje – de que o desafio maior que se impõe à inteligência brasileira é o de capacitar-se de que esse país não pode passar sem uma universidade séria. Esta nação exige pelo menos uma universidade de verdade, uma universidade em que possamos dominar todo o saber humano e dominá-lo conjuntamente como um todo, para que o efeito interfecundante do convívio do matemático com o antropólogo, do veterinário com o economista, do geógrafo com o astrônomo gere um centro nacional de criatividade científica e cultural. Só havíamos conseguido as façanhazinhas de criar ancilas, transplantes postos aqui e ali de universidades estrangeiras, onde um pesquisador solitário tentava criar equipes nadando contra a corrente. Esta é uma questão fundamental.

Repito: o Brasil não pode passar sem uma universidade que tenha o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição erudita ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema. Esta é a tarefa da Universidade de Brasília. Para isso ela foi concebida e criada. Este é o desafio que hoje, agora e sempre ela enfrentará. Para isso é que, tantas vezes, nos reunimos na SBPC,

no CBPF[3], em Manguinhos, e sobretudo, no velho INEP[4] e no novo CBPE[5] de Anísio, ele sempre presente discutindo, polemizando. Dizia uma coisa hoje e amanhã o contrário, e era aquela beleza, porque nos obrigava a pensar, a repensar, nos forçava a justificar, a fundamentar. Nos fazia suar a camisa da mente, para questionar, vezes sem conta, cada proposição. Esta postura indagativa de autoquestionamento livre e ardente que foi implantada aqui tem de ser reimplantada, para que nossa UnB se reencontre consigo mesma e realize seu destino.

Entre os companheiros queridíssimos da hora seguinte do fazimento da universidade, se destaca essa figura fantástica que é Oscar Niemeyer. Fisicamente a universidade nasceu nas suas mãos, com seu carinho, o seu talento e o de sua equipe: Rocha Miranda, Lelé, Ítalo[6] e tantos mais.

Logo veio Roberto Salmeron, que sai do Cern[7] em Genebra e se translada com a família para cá, querendo passar aqui o resto de sua vida. Ele é até hoje um viúvo da Universidade de Brasília; chorando a dor de vê-la morrer naquilo que era seu espírito, sua flama: o desejo e a liberdade de pensar, de pesquisar, de ensinar. Encontrei pelo mundo afora – vocês também os terão visto – esses viúvos ou viúvas da Universidade de Brasília. Isto temos sido todos nós, chorando pelo que foi a frustração de nosso sonho maior.

Não se equivoquem, porém, pensando que a Universidade de Brasília já foi ou só foi. Ela é e sempre será nossa maior ambição. A UnB é a ambição mais alta da inteligência brasileira, este é o nosso sonho maior, esta é a utopia de quem entre nós tem cabeça para pensar este país e senti-lo com o coração. Todos os intelectuais brasileiros estão de olhos postos aqui, senhor reitor. Todos sabíamos que a UnB hibernava, mas ia reviver. Esta Nação não pode passar sem ela, eu já disse. Agora ela renasce e renasce porque o Brasil renasceu em liberdade.

Deixem-me trazer outra presença que vocês não veem. É a presença da Comunidade Científica Mundial. Sim, amigos queridos, companheiros, isto existe. Existe uma comunidade secreta, profunda, dando-se as mãos por debaixo da Rússia, dos Estados Unidos, da China. São cientistas que se comunicam, que se procuram, que se adivinham, que se compreendem, buscando soluções por cima das doiduras, da irresponsabilidade das potências mundiais. Estas potestades da guerra, mais predispostas a corromperem a própria vida no planeta do que a se entenderem. Pois bem, a Comunidade Científica olhava de longe, com carinho, esta universidade do Terceiro Mundo, que nascia com vontade de ser a melhor do mundo. Digo a vocês, recordo, que quando discutíamos os estatutos da UnB, eu recebi – estará aí nos arquivos – um telegrama de Oppenheimer. Sim, nada menos que de Oppenheimer, o Pai da Bomba, se quiserem pensar assim. Mas, para nós, o grande humanista. Um telegrama em que ele dava seu palpite sobre um artigo do nosso estatuto. Esta Universidade de Brasília é coisa muito séria, companheiros. Ela é a carne do espírito brasileiro. Ela é a filha da comunidade científica brasileira e mundial que aqui, nos descampados do Brasil central, quer se plantar como a Casa do Espírito, da Inteligência, do Saber.

Este legado, Cristovam Buarque, é o que você tem em mãos. Você e seus companheiros, desafiados, hoje, como nós, ontem, a fazer das tripas coração para, a partir das fraquezas decorrentes desses anos de ditadura e opressão, ir adiante, recriando a universidade necessária. De suas palavras ditas aqui, Reitor, só não concordo com uma assertiva. Não concordo que você não possa errar. Erre, companheiro, erre e erre mais, Cristovam. Só não erra quem não tenta acertar. Limpe a mente, abra o coração, tome partido e ouse. Vá adiante, aceite errar para acertar. Eu errei muito, nós todos erramos demais, tanto que este nosso país ainda não deu certo. Concordo, porém, com você, em que é preciso estar contente com o que se tem em mãos para, a partir do concreto, esgotar as possibilidades de fomento que se oferecem aqui e agora no cumprimento do honroso mandato reitoral e presidir o renascimento da nossa UnB. Ela o conclama e o condena a refletir e agir diante de cada situação concreta, a optar e a lutar, a fim de que se realize a alternativa melhor. Havemos de ser o que houvéramos sido se a hecatombe não tivesse caído sobre o nosso povo, tudo arrasando, tudo enlameando.

Neste dia de sua posse, eu o saúdo, Cristovam Buarque, com a emoção que vocês percebem. Hoje, para mim, é o dia do renascimento no rito de passagem. Uma universidade morre – a que era indigna desse nome-, morre como íbis, a ave que se queima. Uma universidade nasce para ser o que houvera sido: a nossa Universidade de Brasília.

É, entretanto, meu dever, neste dia de alegrias, lembrar tristezas. Começo pedindo a vocês que ponham em fogo nas suas mentes a lembrança do dia do avassalamento. Dia que jamais deve repetir-se. Recordemos hoje e sempre o terrível Dia da Vergonha para todos os que humilharam a Universidade de Brasília. Para todos os que ficaram aqui coniventes com o opressor. Falo do dia e da hora em que 210 professores daqui saíram, compelidos pela mão possessa dos que avassalaram nossa pátria e aqui vieram apossar-se da UnB.

Eu tinha trazido cada um desses mestres para cá: 210. Vieram com suas famílias, tinham aqui moradias mobiliadas e não tinham nada mais em lugar nenhum do mundo. Mas eles tudo largaram para ficarem leais à Universidade de Brasília. Para não serem coniventes com a humilhação, com a deformação, com a destruição da UnB, no que ela tem de ser: a Casa, o Centro, o Coração da consciência e da cultura brasileira. No momento em que ficou evidente que o reitor era um pau-mandado, que a universidade não era mais nossa universidade sonhada, porque isso aqui se tinha convertido na casa da intolerância e do despotismo, eles se foram em diáspora pelo Brasil e pelo mundo afora. É preciso que um dia um monumento se levante nessa universidade como o monumento dos burgueses de Callais, para recordar e exorcizar aquele horror. Eu o vejo como um monumento duplo que retratará dois momentos cruciais. O da prisão e humilhação de dezenas de professores que em 1964 foram desnudados numa delegacia de Brasília e lá passaram a noite sendo atormentados. E, o da saída, em 1965, daqueles 210 professores fundadores da universidade, que daqui se foram para ficarem fiéis ao espírito da UnB, que há de ser.

Trouxe todas essas presenças aqui, hoje, porque achei indispensável este rito. Era meu papel falar disto e eu só podia fazê-lo, ao menos com a emoção com que o faço. Cumprida esta obrigação de honra, cabe, agora, enfrentar outra, mais gratificante, que é homenagear os que aqui ficaram em dignidade. Aqueles que aqui, anos depois, se juntaram, guardando fidelidade à universidade e ao seu espírito. Os que aqui vieram lutar para refazer a universidade, aceitando a dura tarefa de realizar o possível aqui e agora, debaixo do despotismo, até que viesse o amanhecer.

Assim é que homenageio os professores e alunos que aqui trabalharam, estudaram e lutaram nesses duros anos. Aos que foram humilhados, aos que foram torturados, aos que foram assassinados, aos que foram destruídos. Homenageio todos os que, de qualquer forma, resistiram ao capitão de mar e guerra, ao milico sabe-tudo, nomeado interventor que assumiu o poder reitoral da forma mais despótica para, ao longo das décadas, espargir sanções e prêmios.

Meu querido reitor, sua tarefa é não mais e não menos do que reintegrar a Universidade de Brasília no comando de si mesma, para que, com autonomia e em liberdade, ela se repense. Na minha hora, ajudei a pensar uma utopia de universidade para Brasília. Ajudei, também, várias universidades de outros países a repensar-se. Enquanto exilado, vivi como um sapateiro remendão, a pôr meias-solas em universidades de toda a parte. Não importa que minhas meias-solas não tenham pegado. Nenhuma delas pegou, nunca. De fato, não importa nem mesmo que nenhuma utopia se realize. Não é preciso. Só é preciso

haver utopia.

A primeira obrigação da comunidade de professores e alunos da UnB, meu querido Cristovam, é olhar para frente para prefigurar, aqui e agora, utopicamente, o que dentro de dez, de vinte anos, a UnB há de ser. Fixar metas e lutar por elas, com clareza sobre os objetivos a serem alcançados, sobre a utopia a ser cumprida.

Esta é a função da utopia: ordenar, concatenar as ações, para fazer frente ao espontaneísmo fatalista e, sobretudo, para impedir que os oportunistas façam prevalecer propósitos mesquinhos. Impedir que o professor tal, muito competente às vezes em seu campo, porém, com mais talento ainda para puxar o saco do ministro tal, para adular o senador tal, a fim de que o seu pequeno reino da universidade cresça mais que a universidade como um todo. Esta eficácia daninha destrói a universidade, tal como o câncer destrói um corpo. É um parasita que vive da carne da instituição que habita.

Uma universidade que não tem um plano de si mesma, carente de sua própria ideia utópica de como quer crescer, sem a liberdade e a coragem de se discutir amplamente, sem um ideal mais alto, uma destinação que busque com clareza, só por isto está debilitada e se torna incapaz de viver o seu destino.

A esta altura, o desafio que se coloca diante de vocês, meus queridos colegas, meus queridos estudantes da Universidade de Brasília, é perguntar: Universidade de Brasília, para quê? Universidade de Brasília, para quem? O Brasil precisará de mais uma universidade conivente?

Pode-se dizer da cultura erudita brasileira, que ela serviu e serve mais às classes dominantes, para a opressão do povo, que a outra coisa. Muitas vezes foi como um enfeite, um adorno, quando não foi a legitimação do poder dos poderosos, a consagração da riqueza dos ricos e a consolação dos aflitos com as realidades desse mundo.

Mesmo quando dominou os saberes técnicos, os dominou muito mais para produzir, acumular e exportar lucros do que para construir um país habitável, para implantar uma sociedade solidária. O saber ou a técnica, por competentes que sejam, nada significam, se não se perguntam para que e para quem existem e operam, se não se perguntam a quem servem, se não se perguntam se há conivência do sábio com o cobiçoso.

A dura verdade é que nós, universitários, temos sido e somos, também nós, coniventes com o atraso do povo brasileiro. Somos coniventes com o projeto que fez de nós um povo de segunda classe, dentro da civilização a que pertencemos. Como negar que tivemos, como nação, um desempenho medíocre? É evidente que sim, mas cabe perguntar quais são os fatores causais desta frustração.

Nesta tarefa de desvendamento das causas ocultas e ocultadas de nosso atraso nacional é que temos sido mais coniventes. É gritante o descaso acadêmico pela elaboração e difusão de um discurso através do qual o nosso povo se explique e se aceite. As classes dominantes dizem, com toda altivez, que a culpa do atraso não é delas. Estaria no clima, na mistura de raças: tanto calor, tantos mulatos. Nada valem todos os saberes científicos que aí estão a dizerem há tantas décadas que nenhum fator natural, climático ou racial é explicativo do desempenho de um povo. Dentro da pupila de nossas classes patronais e patriciais, continua persistente este olhar racista, raivoso, azedando a convivência entre os brasileiros.

Alguns idiotas acham que o atraso se deve, talvez, a sermos católicos e não protestantes. A França e Itália estão muito bem, obrigado, apesar de não serem protestantes. Também se costuma dizer que foi uma pena que aqui se fixassem justamente os lusitanos, em lugar dos holandeses ou dos franceses. Se não fosse assim, todos falaríamos francês, teríamos olhos azuis, seria uma maravilha. Esses tolos que rejeitam o português como colonizador nunca foram ao Suriname ou a Caiena. Nunca viram. Nunca viram outras colonizações.

Há quem diga que a culpa real do nosso atraso está em ser o Brasil um país penosamente pobre. Ora, foi demonstrado, irretorquivelmente, que éramos muito mais ricos que qualquer país do século XVI ou do século XVII, pela nossa produção. O que o Brasil exportou de açúcar e de ouro enriqueceu o mundo. Aqui, deixou buraco e sepultura. Onde no mundo se haverá gastado tanta gente como aqui se gastou?

Outro falso fator causal do nosso atraso residiria supostamente em que somos um país jovem; qualquer dia alcançaremos a maioridade e iremos adiante. Fala-se de nós como se fôssemos menores de idade, como os índios. O fato incontestável, porém, é que o Brasil é cento e tantos anos mais velho que os Estados Unidos. Somos, portanto, um país maduro, ameaçado até de apodrecer de tão maduro pelas condições de existência que impõe a seu povo.

Há ainda quem diga que a raiz do nosso atraso estaria no plano cultural. Não há tolice maior. Os Estados Unidos nunca tiveram uma Ouro Preto, uma Bahia, um Recife. Nunca tiveram cidades dessa dignidade, dessa beleza. É certo, porém, que nas suas igrejinhas de tábuas, no seu mundo de granjeiros livres, eles encontraram base para construir uma sociedade muito mais capaz de progresso generalizável, nós não. Às vezes penso que somos, de certa forma, o que os Estados Unidos teriam sido se, na Guerra de Secessão, vencesse o Sul. Aqui, o Sul venceu. Nem houve guerra, tanta foi a conivência. Nossos “sulinos”, que eram toda a classe dominante, criaram aqui essa sociedade hedionda, repelente, doente: enferma de desigualdade.

É preciso entender bem, sem deixar-se iludir, que o discurso explicativo das classes dominantes, que ressoa por toda a parte, apesar de tão absurdo é da mais extraordinária atualidade e funcionalidade. Nele, se assentam políticas governamentais muito presentes. Por exemplo, a justificativa de que precisamos produzir para exportar é dada como uma compensação da nossa pobreza. A afirmação de que necessitamos de capital estrangeiro, quando é evidente que ele nos sangra e que somos, de fato, um país exportador de capital, também se funda na ideia esdrúxula de que somos, ainda, um país por fazer, uma área por colonizar, que estaria até hoje por civilizar.

A verdade verdadeira é que este discurso das classes dominantes constitui um dos mecanismos de manutenção do Brasil na miséria e no atraso. Ele é uma das causas, um dos fatores intelectuais, desse nosso país não ter dado certo ou ainda não ter dado certo. Coactado que foi desde sempre nas realizações de sua potencialidade, dentro das várias civilizações em que esteve integrado, o Brasil cresceu deformado, aleijado, enfermo.

Um exemplo luminoso de que somos um país enfermo de desigualdade nos é dado pela educação primária – matéria em que estou metido de mãos e pés com Brizola, no Rio de Janeiro. Neste campo, somos um caso teratológico de atraso calamitoso. Nossos maiores centros culturais, como o Rio e São Paulo, não conseguem nem dar a 2ª série da educação elementar à metade da criançada. E assinale-se que a aprovação na 2ª série é que comprova a alfabetização.

Na educação pública somos piores do que o Paraguai e a Bolívia. Falo desses países-irmãos não só porque são pobres, mas porque em ambos a língua da população é uma e a língua da escola é outra. Como é que eles conseguem levar mais crianças à 4ª série primária do que nós? Alguma coisa há de errado, alguma coisa há de podre nessa Dinamarca nossa. Por que nós, que fomos capazes de fazer indústrias e cidades e algumas façanhas mais como essa Brasília, não fomos e nem somos capazes de fazer essa coisa elementar: ensinar todos a ler, escrever e contar?

Nosso objetivo, hoje, no Rio de Janeiro, é criar a escola pública que o Uruguai tem desde 1850. Ali, como na Argentina e no Chile, como no mundo inteiro, a escola pública é uma escola de dia completo. A criança entra às 8 da manhã e sai às 4 da tarde. Pela primeira vez se faz isso no Brasil: no Rio de Janeiro. Brizola faz uma revolução educacional? Revolução nenhuma! Ou apenas uma revolução arcaica. Fazemos simplesmente o que o mundo faz há muito tempo. Ora, a criançada brasileira não é feita de gênios, devíamos saber. As nossas, como todas as demais, não podem aprender em escolas de três turnos que dão de fato duas e meia, três horas de aula. Até escola de quatro turnos eu encontrei no Rio de Janeiro. A questão que estou colocando, exemplificativamente, não é de educação. Quero é demonstrar o quanto essa sociedade nossa é perversa com o seu povo.

No plano alimentar, sabidamente, a situação é ainda pior. A fome aí está, crônica, esfomeando metade dos brasileiros. A propósito, a primeira coisa que tivemos de fazer no Rio de Janeiro, ao assumir o governo, foi dar uma boa merenda nas escolas: um pratão de comida, arroz, feijão e carne a todo aluno da escola pública. A escola não é lugar de dar comida, isto é assistencialismo, diria algum alienado. Deveríamos dar emprego. Talvez seja verdade. Ocorre, porém, que enquanto não se consiga atingir essa meta do pleno emprego – só alcançável no plano federal – não poderemos deixar a criançada do Rio morrer de fome ou de prostração.

Com efeito, a economia brasileira não está organizada para ocupar o povo, como ocorria no período colonial ou nas primeiras décadas de nossa vida independente. Então, o que mais se importava era gente, era mão de obra. Mão de obra negra, escrava, da África através de séculos. Mão de obra branca, imigrante, mais tarde. Hoje, o que sobra aqui é gente, é mão de obra querendo ser explorada por algum patrão que não aparece. Se pudéssemos exportar os mineiros, os cearenses, os goianos, talvez se desse jeito, viabilizando até o capitalismo dependente. A Europa exportou no último século uns 60 milhões de europeus para as Américas e outras partes. Sobrava, então, branco para exportar. Somados aos que matou em guerras, eles perfazem uns 100 milhões. Com sua erradicação do quadro demográfico europeu, se evitou a revolução inevitável que Marx vaticinava.

Nossa classe dominante não tem essa saída singela para nossa crise de superpopulação. De fato, uma crise de subemprego e de subutilização de nossos recursos; crise, na verdade, programada como um projeto próprio das classes dominantes, que querem continuar enricando, indiferentes ao povo que cresce na fome, na ignorância.

Não tendo como exportar nossa gente – ninguém os requer – temos é que reorganizar a vida aqui em outras bases, a fim de que o povo possa trabalhar, comer e viver. Isto nunca foi feito. Nosso povo sempre viveu famélico, por maior que fosse o PIB ou o produto per capita de que falam esses economistas desvairados. A renda per capita dos negros produtores de açúcar de Pernambuco ou da Bahia era a mais alta do mundo do seu tempo. Maior, ainda, era a dos negros tiradores de ouro de Minas Gerais, que multiplicavam a existência de ouro neste mundo. Mas uns e outros duravam em média sete anos no eito.

Não se estranhe que eu fale hoje disto, aqui. Esta Universidade de Brasília existe para tomar estes problemas em sua carnalidade, a fim de equacioná-los. Existe para entender o Brasil com toda profundidade, e a primeira tarefa que se impõe no exercício dessa missão é ter a coragem de lavar os olhos para ver nossa realidade, é perscrutá-la, é examiná-la, é analisá-la. O Brasil, entendido como seu povo e seu destino, é nosso tema e nosso problema.

Assinalei até aqui as falsas causas de nosso atraso histórico, os fatores responsáveis, os supostamente responsáveis, por andarmos na rabeira de tantos povos, nossos contemporâneos. Cumpre perguntar agora: se aquelas causas e fatores eram infundados e falsos, quais são os verdadeiros? Não pretendo aprofundar-me na resposta a esta questão. O que se cumpre perguntar aqui e agora é que culpas cabem a nós, universitários, neste campo. Uma primeira resposta a essa questão não é difícil. Que universidade nossa discute as causas do atraso em suas cátedras, como uma questão fundamental? Que universidade toma esses temas como sua causa? Todo o saber acumulado nelas é fiel ao povo que as subsidia para formar e manter as cabeças mais brilhantes?

Temo muito que nossos acadêmicos não tenham sido fiéis ao povo brasileiro. Temo até que a maioria de nós serviu mais a sua opressão que a sua liberação. Por exemplo, no curso da longa ditadura que acaba de eclipsar-se, vimos florescer extraordinariamente as Ciências Sociais em nosso país. A politicologia esgalhou-se em dezenas e dezenas de doutorados. Não é espantoso que isto ocorra precisamente quando mais se torturava no Brasil? Não é de perguntar como e por que, quando havia menos política, quando os militantes políticos eram despedaçados na tortura, assassinados e tinham seus corpos escondidos, mais doutores em ciência política se multiplicavam pelo país afora?

Por tudo isto é que precisamos ser claros no debate permanente das funções e dos deveres da universidade para com o povo. De todas e de cada uma das universidades brasileiras, mas muito especialmente desta nossa Universidade de Brasília. A UnB não é uma universidade qualquer. Muito lutamos para criá-la. Havia demasiadamente gente contra. Israel Pinheiro, engenheiro admirável, dizia que duas coisas não deviam existir em Brasília: operários e estudantes. É evidente que Juscelino não se guiava por este critério, mas ele também duvidou da conveniência de se criar aqui uma livre universidade pública ou uma universidade privada. Nós que lutamos para ver surgir a Universidade de Brasília, tal como foi concebida e afinal consagrada na lei, sempre a pensamos como a Casa da Consciência Crítica em que o Brasil se explicaria e encontraria saída para seus descaminhos.

Cabe assinalar agora que, dentro do Brasil, Brasília, em particular, é tema, causa e problema dessa nossa UnB. Brasília foi feita para a transposição da burocracia do Rio de Janeiro para cá. Ela trouxe consigo, é certo, grande quantidade de gente que dominava vários campos do saber, mas eles eram os poucos, dentre os numerosos servidores que lá assessoravam desde sempre o poder público. Felizmente Brasília foi feita por Juscelino, aquela beleza de pessoa. Imagino o que seria essa nossa Brasília se ela fosse feita por Dutra. Dutra que fez o Ministério da Guerra, o do Rio de Janeiro, aquele despautério. O nosso orgulho de termos a cidade do milênio, o devemos a JK, à sua coragem de chamar Oscar Niemeyer e Lúcio Costa para aqui reinventarem a cidade.

Voltemos, porém à questão que colocávamos: às funções da universidade, à necessidade de se repensar seu papel, especialmente o que devemos à cidade de Brasília e aos órgãos de poder aqui instalados. Há quem diga que aqui em Brasília o que sobra são assessorias. Só a Câmara dos Deputados teria mais assessores do que todos os Parlamentos do mundo. São as más línguas. Não deve ser verdade.

Não falo desse tipo de assessores. Falo de uma assessoria cultural, científica e técnica, que seja independente e insubornável, composta por sábios, que não sejam servidores de ninguém, que não dependam de partido nenhum. Essa assessoria autônoma, só a universidade pode dar. No Rio de Janeiro contava-se com uma cultura erudita arraigada que lá podia dar esclarecimento antes que qualquer decisão fosse tomada, por qualquer potestade. Aqui no pasto goiano, onde e com quem os poderes vão se informar? Com as vacas magras e chifrudas que pastam no cerrado? Aqui não haveria com quem se assessorar, se não se realizasse um transplante cultural prodigioso. Essa é a façanha que tentamos realizar.

A Universidade de Brasília veio cumprir essa função. Para tanto o requisito indispensável é que ela surgisse como universidade autônoma, a fim de que tivesse condições de tratar com os representantes dos Poderes com a independência da Casa dos Saberes, como o Centro de Cultura em que o professor independente possa pensar de forma diferente do governo. Assim foi sonhada essa universidade. Ela foi pensada, também, como indispensável para que Brasília pudesse conviver com os outros centros culturais do país, como Rio, São Paulo, Belo Horizonte; e com os estrangeiros, como Paris, Roma e tantos outros. Só atendendo a esses requisitos que a UnB poderia tornar Brasília capaz de, um dia, multiplicar-se com grandeza e sabedoria. Brasília é arquitetônica e urbanisticamente o fruto mais maduro da cultura-Rio. Foram precisos séculos para produzirmos Lúcio e Oscar. Brasília disso se beneficiou. Ela surgiu quando o Rio se tornou um centro autônomo de civilização. Brasília precisa ser, ela também, um centro assim. Essa é a nossa tarefa.

Assim pensamos ontem, quando planejamos a Universidade de Brasília, tal como ela era. Hoje são vocês que a têm nas mãos, como um desafio, desafio tremendamente difícil. Querem um exemplo? Eu sei fazer odontólogos e matemáticos, por exemplo, em qualquer quantidade. Quantos advogados ou psicólogos vocês querem: 14 mil? 17 mil? Médicos, vocês querem 20 ou 40 mil? Engenheiros, 30 ou 100 mil? Eu os formo todos. Deem-me uns poucos anos e os formo bem-formados. Agora me peçam um Oscar Niemeyer e eu não formo nenhum. Peçam um Aleijadinho, e eu não formo nenhum. Peçam um Villa-Lobos e eu não formo nenhum. Essa é, entretanto, a nossa responsabilidade, a que somo outra, ainda maior: a de criar aqui uma cidade autêntica, singular e criativa como Ouro Preto, Bahia, Rio. Isto é o que Brasília há de ser. Como? Como negar, porém, que essa é a missão da UnB? Mas como ajudar a florescer aqui um centro cultural autônomo e criativo? Tentamos contribuir para isso, criando no nosso campus um ambiente propício. Foi com esse objetivo que demos casas a artistas que aqui vieram viver, para pintar ou ensinar a pintar, se quisessem; para fazer gravuras ou ensinar gravuras, se quisessem; para fazer música e ensinar a apreciar música, se lhes aprouvesse; mas, essencialmente, para conviver conosco, para ajudar a compor uma comunidade universitária, enriquecida por gente criativa em todos os planos.

O reitor Cristovam Buarque nos dizia em seu discurso que não é com carta doutoral que se comprova competência. Assim é. Aqui na UnB, quando se fez a lei – fui eu que a redigi -, nela se inscreveu que esta é uma universidade experimental, livre para tentar novos caminhos na pesquisa e no ensino. Formamos e doutoramos, por exemplo, em quatro anos, um rapaz de alto talento matemático que não tinha nem diploma primário. A família, superprotegendo-o, não havia lhe dado escola, mas ele tinha uma cabeça ótima. Aqui chegou, começou a frequentar aulas de matemática, como aluno livre, logo saltou para o mestrado.

Os matemáticos me disseram que ele era ótimo, mas não podia estudar oficialmente, porque não tinha nem o ginasial. Isso eu resolvo – respondi – e dei-lhe o ginasial. Em quatro anos o rapaz Fausto Alvim era doutor, não doutor feito por mim, ele fez seu doutorado na Inglaterra, brilhantemente. Esse caso exemplifica a responsabilidade que tomamos às vezes no livre exercício das regalias de uma universidade experimental e livre. Outro exemplo nos dá Zanini, que também não tinha curso superior e foi feito professor da Universidade de Brasília, por sua competência específica e admirável, excelente professor.

Não sei como andará aquela lei que redigimos e fizemos aprovar. Ela dava à Universidade de Brasília regalias especiais. Por exemplo, o usufruto das rendas  líquidas da Companhia Siderúrgica Nacional. Outorga que se perdeu, ao que sei. Que mais se perdeu nas transformações legais que se fizeram nestes anos todos? Ignoro. O importante é que não se perca a liberdade de tentar acertar por diversos caminhos. A responsabilidade de ousar. O direito de errar.

Peço a vocês a paciência de me ouvirem uns minutos mais. Tenho algumas coisas a dizer, hoje, que não quero calar. Nosso amigo Pompeu referiu- se às duas lealdades a que a universidade se deve. Ele está sempre falando delas e o faz com toda razão e propriedade. Quero comentá-las e acrescentar a terceira lealdade, inscrita também nos nossos estatutos originais. Refiro-me à lealdade aos padrões internacionais do saber, mestrado ou doutorado de mentira, como moeda falsa, é crime contra a cultura, mais do que isto, é crime contra a pátria. Isto é muito importante. Vi recentemente uma lista de instituições acadêmicas, com o mais alto grau de excelência de nosso país. Ignoro quais foram os critérios e creio até que eles poderiam ser discutíveis. Mas com comparativos e a posição da Universidade de Brasília em cada campo, se não era desprezível, era muito baixa.

Nosso prestígio minguou demais. A ditadura que avassalou, humilhou nossa UnB não teve nem mesmo a competência meramente técnica que é compatível com o despotismo. Ela rebaixou essa universidade.

É preciso estar atento para isto, uma universidade se faz é com gente, é com gente competente, é com gente muito competente. É preciso evitar, impedir, todo compadrismo. É preciso exterminar todo filhotismo. É preciso vedar todo protecionismo. Esse espírito paternalista de achar que quem entrou, por medíocre que seja, pode ir ficando; que um professor-auleiro deve ser deixado por aí cumprindo seu papel, ainda que o faça muito mediocremente, mata uma universidade.

Uma universidade se faz é com multiplicadores. O primeiro gesto nosso, quando começamos a implantar a Universidade de Brasília, foi abrir, simultaneamente, a primeira série da graduação e os cursos de mestrado. Como conseguimos isto? Escolhemos oitenta jovens de talento e os trouxemos como instrutores juntamente com seus futuros mestres. Pertence, que está sentado ali, o procurador-geral da República, veio para cá como um desses instrutores. Era um dos jovens que selecionamos informalmente entre os melhores da sua geração. Nós o encontramos perguntando a seus professores: qual o menino mais inteligente que apareceu por aqui ultimamente?

Um instrutor de então era um estudante de mestrado, com prazo de três anos para conseguir seu grau e prosseguir no doutorado, ou não conseguir e sair da universidade. Enquanto frequentava os cursos de pós-graduação, ele dava aulas aos alunos de graduação. Os professores sem doutorado tinham também um prazo máximo de cinco anos para alcançá-lo e só permaneciam na UnB se classificados entre os melhores que se ofereciam. A função de professor titular não pertencia à carreira docente; era o posto de um mestre chamado a conduzir programas de pós-graduação por sua competência reconhecida por seus pares e demonstrada numa obra copiosa e profunda.

O nosso reitor tem que sair por aí, ele também, com a lâmpada na mão, procurando talentos, roubando talentos, onde puder, mas trazendo para cá, além dos talentos jovens, também todos os talentos maduros que puder atrair. Celso Furtado, que está aqui a meu lado, vai para Bruxelas, como embaixador, é uma pena. Não sei o que ele vai fazer lá. Suponho, porém, que se lhe fosse dada pela UnB oportunidade de criar um Centro de Estudos Econômicos da América Latina, ele até que poderia aceitar. Éxemplifico com Celso um raciocínio que é válido para muitos dos poucos intelectuais maduros que o Brasil tem. Se lhes forem dados uns poucos recursos, um milésimo do que nossa universidade gasta para trazer meia dúzia de colegas seus dos melhores, eles formarão aqui um novo núcleo multiplicador.

No caso da economia, clama aos céus a necessidade urgente de criar núcleos capazes de repensar a problemática nossa e da América Latina. Os economistas oficiais estão todos doidos. A economia, desvairada. Ninguém trabalha na busca das alternativas válidas que se abram a nós para sair desse atraso autoperpetuante. É preciso repensar outra vez tudo, é preciso juntar gente nova, de cabeça fresca e lhes dar meios, desafiando-os para, com toda a liberdade, criar uma nova economia. Criá-la, como só uma universidade pode fazer, sem que ninguém dê ordens e palpites em cima do trabalho deles, só com o objetivo de – reconhecendo que esse país nosso não deu certo – buscar o modo de criar uma economia de prosperidade generalizável a toda a população, para que o Brasil dê certo. É com gente assim, é com pensadores maduros que para cá venham repensar todos os problemas da civilização, do mundo, da América Latina, que sairemos um dia do atraso. Para tanto, é preciso abrir a universidade aos talentos mais promissores que surjam no Brasil. É preciso acabar com o paternalismo. Essa ideia daninha de que uns tantos anos de serviço dão direito à ascensão aos postos mais altos, e até à função de professor titular, é pura loucura no caso da universidade. Isso aqui não é carreira militar que pode ser gerontocrática e hierárquica, porque de fato eles não precisam fazer guerra nenhuma. Nós sim, nós temos que travar nossa guerra contra o atraso, e nela só se vence com competência.

Esse é o sentido preciso da lealdade aos padrões internacionais do plano do saber a que eu aludia. Para fazê-lo sentir mais carnalmente, figadalmente, permitam que eu reconte aqui um episódio histórico conhecido de todos, mas demonstrativo como nenhum, de insubstituibilidade do saber científico. Reporto-me a um dos momentos mais trágicos da vida humana. Aquele em que os norte-americanos lançaram suas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, deixando o mundo perplexo. Sabe-se, agora, que elas não eram necessárias para vencer a guerra, a guerra estava ganha.

Elas foram as bombas da Terceira Guerra Mundial, destinadas tão só a coagir a União Soviética e o mundo para tudo se submeter à hegemonia norte-americana. Os russos tinham perdido 17 milhões de habitantes. A nação debilitada sentiu que as bombas eram lançadas contra ela. Stalin encolheu-se, indagando o que fazer diante da bomba. Frente à nova hegemonia romana, a pax americana, fundada no monopólio da bomba do fim do mundo, o mundo todo, apavorado, se perguntava: que fazer contra quem tinha a bomba? Quem tudo podia. Stalin simplesmente chamou os universitários, os físicos, os matemáticos, os químicos e lhes disse: a URSS precisa da bomba. Os russos, com sacrifícios inenarráveis, haviam acabado de evitar o milênio hitlerista: agora viam um novo despotismo se levantar em nome da liberdade e do lucro.

Outro milênio hegemônico contra o mundo inteiro se implantaria se não tivessem a bomba. Só os cientistas podiam dá-la. Em três anos, Stalin teve a bomba atômica: dois anos depois teve a bomba de hidrogênio. Manteve, assim, o equilíbrio do poder, terrífico equilíbrio do terror recíproco. Melhor, é verdade, que a pax ditada por Wall Street.

Meus queridos amigos, saber é isto: uma força, uma arma. Naquela conjuntura de guerra ou aqui na nossa conjuntura do subdesenvolvimento, da dependência, da guerra contra a pobreza, contra a ignorância, o acelerador da história é o saber. Ao menos é esse o acelerador que a nós, universitários, cumpre dominar e manejar. Este é o sentido profundo do nosso princípio de fidelidade aos padrões internacionais do saber. Ciência falsa e mediocridade nada são, nada podem.

No caso da universidade, este desafio científico aponta para o dever de evitar que se cultive um saber fútil, inútil. Que seja esse saber de brincadeira de tantos acadêmicos universitários, em que um escreve para o outro.

Às vezes acho que a imensa maioria dos cientistas vive do prestígio da ciência sem jamais contribuir mensuravelmente para ela. Tem que ser assim, concordo eu; mas não pode ser só assim. O último reino da irracionalidade é a ciência que, embora sendo a província mais racional do mundo, é também insusceptível de ser “racionalizada”. Seus precários êxitos se baseiam exatamente no fato de que milhares de pessoas têm que estar procurando, às cegas, as mesmas coisas por caminhos diferentes, porque não sabem onde vai estalar a descoberta. Só um racionalizador doido, gerindo as pesquisas do câncer, por exemplo, tiraria 200 mil pesquisadores, por serem demasiados, reduzindo-os a 20 mil, para fazer cada qual trabalhar no seu eito, sem ninguém repetir o que o outro está fazendo. Isto seria a loucura desvairada. Se 200 mil nada descobrem, quanto mais 20 mil.

Como se vê, a ciência é por sua natureza uma procura, uma busca, uma inquietação anárquica, aleatória, que tem que ser livre e até arbitrária. Mas essa liberdade tem que ser exercida dentro da pasta de dois sentidos de responsabilidade. A responsabilidade de que o saber não seja inútil, mas sirva ao seu povo e ao seu tempo, ponderado com a responsabilidade de que ele seja livre, vale dizer, sem nenhuma ideia utilitarista, pragmática de que a ciência deva se dedicar a tarefas práticas. Aprendemos a duras penas que nada há de mais frutífero do que a pesquisa pura, nominalmente infrutífera.

Dentre as questões postas ao saber que utilizamos, cumpre enfrentar primeiríssimamente esta pergunta: por que esse país nosso não deu certo? País que deu certo, para mim, é aquele em que cada pessoa tem um emprego, em que todos comem todo dia, em que toda criança vai à escola, em que todos têm moradia, em que todo velho e doente é amparado. Isso é um país que deu certo. Há muitos que deram certo. Um país que deu certo pode não dar bola para o que se faz na universidade, pode despreocupar-se com o saber que nela se curte; mas um país que não deu certo como o nosso, não. Estamos desafiados a perguntar ao nosso filósofo: filósofo, qual a sua utilidade?

Não estou querendo que ninguém diga ao filósofo o que ele vai fazer. Quero é dizer ao filósofo que participe do debate com o matemático, com o economista, com o geólogo: o Brasil é nossa causa. A luta contra o atraso é nossa guerra e nessa guerra a universidade toda está envolvida, a filosofia também, esta é a segunda lealdade.

A terceira lealdade – trágica lealdade, cujo descumprimento vocês sofreram na carne – está inscrita, ela também, nos estatutos da UnB, mais ou menos com os seguintes termos: nesta Universidade ninguém, professor ou aluno, será punido ou premiado, jamais, por sua ideologia. É o princípio do respeito recíproco, da tolerância, da liberdade docente. É preciso que a esquerda, reintegrada agora em seus direitos, não faça o que fazia a direita; não comece a ser intolerante. A tolerância é condição essencial da vida universitária; a provação mais dura, mais humilhante que vocês sofreram, foi aquele reitor sabe-tudo que aqui estava. Ele sabia perfeitamente qual professor pensava bem e qual pensava mal, era subversivo. Ao primeiro dava premiozinhos, ao outro punia. Onde isso ocorre numa universidade, o espírito humano fenece e a criatividade morre.

Como se vê, essa lealdade, tal como as outras duas, é fundamental, e a UnB deve ter orgulho dela. Vocês precisam tomar aquele velho estatuto para ler e pensar. É até provável que não sirva mais para a UnB de hoje, mas nele se incorporam valores permanentes que se tem de recuperar. Valores oriundos do amplo debate com base no qual se estruturou a UnB. Aqueles debates tiveram uma importância crucial na história da inteligência brasileira. Foi a partir deles que se elaboraram os documentos basilares da Universidade de Brasília, documentos relevantíssimos em dois planos: pela crítica das instituições universitárias que tínhamos e que pela primeira vez em nossa história eram examinadas com objetividade e descritas na mediocridade que encarnavam e pela proposição de uma universidade de utopia. Até então, todos estavam muito contentes com a universidade que tínhamos, nem se sabia que ela era problema. Foi o projeto da Universidade de Brasília que serviu de tábua de contrastes para a reforma universitária. Dizendo o que nossas universidades eram em comparação com o que a UnB ia ser – embora nunca tenha sido – elas tomaram consciência de si mesmas e, envergonhadas, trataram de melhorar. Assim se desencadeou a reforma frustrada por razões externas iníquas.

A Universidade de Brasília tem que voltar a exercer essa liderança intelectual, pensando com profundidade a universidade e a nação. Propondo alternativas às práticas que aí se veem, deploráveis, de uma universidade em que os professores fazem de conta que ensinam e os alunos fazem de conta que aprendem. Uma farsa trágica.

Voltando ao nosso princípio das responsabilidades sociais da universidade, quero assinalar mais profundamente, ainda, o papel da universidade como a casa em que a nação brasileira se pensa a si mesma como problema e como projeto. Não podemos deixar isso em mãos dos políticos: menos ainda, em mãos dos militares ou de seus sequazes tecnocratas: eles não têm nem identidade nacional efetiva, nem grandeza mental suficiente para pensar no Brasil em todas as suas potencialidades, vendo nosso povo como protagonista da história universal.

É preciso que essa Universidade de Brasília aprofunde a ideia de que somos uma parcela muito importante desse mundo, um pedaço ponderável e belo da humanidade, se não o maior, diria eu, o melhor. Vamos ser 200 milhões perto do ano 2000. Vale dizer, um dos blocos nacionais maiores e o mais homogêneo da Terra no plano cultural e linguístico. Junto com os outros latino-americanos, somaremos 600 milhões. Só seremos comparáveis, então, aos eslavos, aos chineses e aos neobritânicos. Esta mola humana, uma nova romanidade mestiçada de sangues negros e índios é o quadro histórico da América Latina que constitui o campo em que o nosso destino vai se jogar.

Temos obviamente um papel relevante a representar no mundo. Fico perplexo, vendo Cuba com seus parcos 1 O milhões de habitantes ser vital para a independência da África e nós não sermos nada. Este nosso itamaratizão de gorduras flácidas é ridículo frente a Cuba, que, fazendo das tripas coração, garante a independência de Angola.

Meus amigos, meus companheiros, meus colegas, é preciso aprofundar esse raciocínio, é preciso definir nosso papel na América e no mundo. Temos que encontrar um caminho nosso de realização de nossas potencialidades, de exercício pleno de nossos poderes para realização de nosso destino. Aquele destino que nós mesmos definiremos para nós e não o que nos é induzido, hoje, pelos que fazem de nós a contrapartida necessária e subalterna à sua própria grandeza.

Nosso caminho não será o soviético, nem o japonês, nem o canadense. Ninguém revive a história alheia. Cada roteiro trilhado por um povo no esforço para realizar, na civilização a que pertence, o seu destino, é um caminho próprio e único. Assim será o nosso, precisamos é de claridade para encontrá-lo. Sabendo bem que, espontaneamente, pelo entrechoque de interesses a partir da situação de dependência em que vivemos, nosso atraso relativo será crescente. Isto porque outros crescem a um ritmo mais acelerado que o nosso, inclusive porque nos exploram, comendo nossa carne, bebendo nosso sangue.

É imperativo e urgente que se rompa a estrutura legal que estrangula o Brasil. Estrutura urdida secularmente pela velha liderança patricial brasileira, sempre vaidosa de termos alguma lei mais explícita que a inglesa em algum campo de defesa das liberdades, entre os pares; sempre indiferente à sorte do povo. Só nos realizaremos pelo caminho inverso de reescrever suas leis, de passar a limpo a institucionalidade vigente, proscrevendo o latifúndio que ela consagra, coactando a espoliação estrangeira que ela legaliza. É chegada a hora, uma vez mais, de rever esta institucionalidade pervertida e perversa. Em outras instâncias, quando isto ocorreu, a oportunidade se perdeu. Em todos os casos, porque a reabertura do debate sobre as bases constitucionais da vida nacional se deu mais para legitimar as riquezas e os poderes tidos e regidos do que para alterá-los. Assim foi com a Constituição que nos fez independentes, uma história trágico-cômica. Assim foi com a primeira Constituição republicana, uma história cômico-trágica. Assim foi, ainda, em 1934. Assim foi no pós-guerra, quando uma Constituição liberal-reacionária deu nossos fundamentos de legitimidade ao latifúndio, ao entreguismo e à espoliação.

Quando vemos surgir uma comissão constitucional biônica, integrada, principalmente, por netos, filhos e sobrinhos de velhos constituintes, o que devemos pensar? Para que retornam eles outra vez? Não será demais? Algum malvado poderia até achar que os mais vetustos deles deviam ser proibidos de entrar nessa discussão porque têm genealogia demais. Se queremos uma Nova República, como pedimos suas leis aos pais e padrinhos e afilhados da República Velha? O que eles podem trazer de melhor, temo eu, é o espírito de Rui Barbosa, a sagacidade jurídica, a manha tremendíssima, que não foi roubada, mas herdada, da velha classe dominante lusitana, numa continuidade histórica tão admirável como detestável.

Deixem-me dar um exemplo mais. Com dez anos de diferença a lei brasileira e a norte-americana institucionalizaram o modo de apropriação das terras públicas. Lá se estabeleceu na lei a posse como forma de propriedade. Aqui, a compra. O Estado dá terras a você em outorga ou você as compra de alguém, no Brasil. Isto significa que o caboclo que lá está no Brasil central, na Amazônia, lavrando a terra, com o padre o benzendo e o confessando, é um invasor quando chega a Volkswagen com o título registrado no cartório, provando que a proprietária é ela. Nos Estados Unidos é o contrário, lá, a lei abriu o Oeste à colonização do vaqueiro. Quem chegue e faça uma casa e uma roça tem garantida a posse de uma granja que não pode exceder a 30 hectares. Vale dizer, lá prevaleceu a lei da posse, que deu legalidade à criação de milhões de granjas, onde o povo livre, capaz de prosperidade generalizada, se expandiu. Aqui, a lei legitima, há quase duzentos anos, o latifúndio. O que se expande é a propriedade imensa e infecunda. É o monopólio da terra, menos para usar – porque não usa – do que para compelir toda mão de obra a servir aos fazendeiros. O lavrador que sai de uma fazenda cai n’outra igual.

Ultimamente, tenho falado muito, no Rio, de Síndrome de Calcutá. Pondero que, se o Rio crescer, de 1980 ao ano 2000, como cresceu de 1960 a 1980, chegará a ter 17 milhões de habitantes. A isto é que chamo Síndrome de Calcutá. São Paulo, pelo mesmo cálculo, terá 24 milhões, será a maior cidade do mundo e a mais faminta e infeliz. Como em Calcutá, na Índia, a maioria da população vai nascer e morrer na rua, sem nunca ter tido casa. Os ricos viver em campos de concentração aramados e eletrificados, com medo dos pobres.

Isto é o que fez a ditadura militar para impedir que a legislação agrária e antimultinacional do presidente João Goulart se implantasse. O que Jango e eu queríamos era nem mais nem menos do que criar 10 milhões de pequenos proprietários, fixando metade da população brasileira na terra para impor um novo pacto às multinacionais, proibindo que o capital que cresceu aqui, em cruzeiro, se multiplique em dólares. Era criar universidades como essa nossa UnB como casas da crítica e da conscientização, que ajudassem o povo brasileiro a definir e a realizar seu destino.

Meus queridos amigos, tudo que disse tão longamente quer apenas significar que as questões cruciais que estão postas para a nação estão postas também para a universidade. A causa da universidade brasileira é o Brasil. O Brasil é nossa tarefa. Pois bem, o Brasil vai ser passado a limpo, a lei básica vai ser novamente reescrita, teremos uma nova Constituição. Poderia isto ser indiferente à universidade? Não. Universidade tem que preocupar-se com toda profundidade com essa questão. Pensar nas alternativas que se abrem nesta hora, vendo e fazendo ver quais as consequências previsíveis de cada um dos caminhos que possamos tomar.

Não nos esqueçamos de que a Constituição zera tudo, como no dia da criação. Dos que nada têm, zera o nada que têm. Dos que muito têm, ameaça minguar parte do que têm. Isto torna crucial o problema da Constituinte. Aí estão, todos o vemos, por todo o país, são os rui-barbosinhas aflitos, os tecnocratas vorazes e corruptos, os gerentes das multinacionais, os latifundiários, a mídia, todos prontos e mancomunados para fazer a Constituição deles, aquela que lhes dê mais garantias e mais lucros. Quem se perfila do lado oposto vê como os donos das terras estão com os trabucos nas mãos, e seus capangas, como os empresários urbanos e seus porta-vozes políticos estão se mancomunando, estão fazendo caixinhas e caixonas, estão conspirando. E nós, intelectuais, com poder precaríssimo, mas precioso, de mobilização da Consciência Nacional, estamos fazendo o quê?

Nossas universidades, esta Universidade de Brasília em particular, não podem fugir do debate constitucional; têm que discutir aprofundadamente cada opção. A alternativa não pode ser a façanha, supostamente revolucionária, de expulsão de todas as multinacionais. Não será também a de enforcar os fazendeiros. Não será, do mesmo modo, lamentavelmente, a de fazer dos bancos, das financeiras e das seguradoras um serviço público, como de águas e esgotos. Mas qual será?

Outras vezes, aqui no Brasil e lá fora, no meu longo exílio, participei de debates em conjunturas semelhantes, em busca de saídas. Participei até de esforços de implementação no poder de alternativas à ordem vigente. Confesso que não tinha noção, naquela altura, de que estávamos tentando impor ao capital estrangeiro, aos bancos e aos latifúndios alterações tão profundas que criariam uma modalidade nova de economia, modalidade que a América Latina toda copiaria, anulando, em consequência, a hegemonia norte-americana. Estávamos, sem saber, tocando no eixo do mundo. Agora sabemos que não se pode cutucar com vara curta. Sabemos hoje quanto precisamos de aliados, de apoios, sobretudo dos socialistas europeus, dos democratas norte-americanos, das igrejas de toda a parte, para viabilizar uma rota que abra a sociedade brasileira à participação, criando uma estrutura social mais voltada para a satisfação das necessidades do povo do que para a otimização dos lucros. Como alcançá-la? Nós não estamos condenados ao acerto, ao contrário, a tendência histórica, se continuarem mandando os que até agora mandaram, é submeter o Brasil a uma mera modernização, mantendo-o na mesma condição. O Nordeste então será mais faminto e todo o Brasil será um Nordeste.

Quero dar meu testemunho, amigos queridos: andei pela terra, conheço o mundo, vi com meus olhos que não há província mais bonita que o Brasil. Conheço bem o povo brasileiro, até como antropólogo posso dizer a vocês que não só a terra é boa como o povo é ótimo. O ruim aqui são os ricos. Os bonitos, os educados. Sinto na ponta dos dedos, se estico as mãos, que em tempos previsíveis e breves se pode criar aqui um país próspero e solidário. Temos todas as possibilidades de fazer com que o Brasil dê certo. A condição é proibir o passado de se imprimir no futuro. É interromper a dominação hegemônica e pervertida de nossa classe dominante infecunda. Inumeráveis são os exemplos de que ela e seus tecnocratas só planejam contra o povo. Aí está este horror que é o Projeto Carajás. Metem lá todo o dinheiro do Brasil, para produzir o minério que os estrangeiros querem consumir. Vão produzir no Brasil um buraco maior que o maior buraco do mundo – que é o de ltabira, em Minas Gerais – deixando os brasileiros tão pobres como os mineiros.

Outro exemplo nos é dado pelos que querem mais capitais estrangeiros, mais indústrias e multinacionais, mais modernização modernosa. Eles se esquecem de que São Paulo tem mais indústrias do que a Inglaterra tinha quando enfrentou a última guerra. Mas esta indústria, ao contrário da inglesa, não é nossa. Aqui implantada, cumpre a função de uma bomba de sucção do sangue brasileiro, de colonização interna do Brasil. Frente a estas questões, as universidades brasileiras têm que se mobilizar. E nelas, e muito especialmente nesta minha, nossa, Universidade de Brasília, que ponho minhas esperanças maiores, de ver um pensamento utópico concreto se formular, conclamando os brasileiros a definir aqui e agora o Brasil que há de ser.

Termino essa longuíssima fala à minha filha querida, desviada, que volta a ser minha namorada. Dizem que falei mal dela, não é verdade. Apenas lamentei a dor que me doía de vê-la avassalada. Hoje, meu sentimento é de euforia. Eu me sinto um freudiano enamorado da minha filha querida que é a UnB.

Imensa é minha alegria de saudar o renascimento da UnB. Só me resta assinalar que nossa querida UnB renasce – e renasce bem e em boas mãos – porque renasce no Brasil a liberdade. A questão fundamental é a liberdade. Reitero: nossa tarefa é o Brasil, mas nossa missão fundamental para que o Brasil se edifique para seu povo é a liberdade.


[1] Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

[2] Nomes extensos citados: José Leite Lopes, Jayme Tiomno, Herón Duarte, Leopoldo Nachbin, Haiti Moussatché, Antonio Rodrigues Cordeiro, João Moojen de Oliveira, Jacques Danon, Otto Richard Gottlieb, Carolina Martuscelli Bori, José de Souza Reis.

[3] Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.

[4] Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

[5] Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais.

[6] Alcides da Rocha Miranda, João Filgueiras Lima (Lelé) e Ítalo Campofiorito.

[7] Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire.