Utopia Como Projeto

Em 1995, Darcy Ribeiro participou de um evento – Diálogos Impertinentes – sobre o tema Utopia com o escritor e psicanalista Rubem Alves, promovido pela TV-PUC SP, no qual ele traduz o que entende por utopia. Na seção Memórias do Futuro, transcrevemos alguns trechos em que Darcy Ribeiro concebe a utopia como um projeto de sociedade que orienta a ação política.

(Sou utópico) por todos os lados, em cima e embaixo. Porque quem tem um país para fazer, deste tamanho, que tem uma potencialidade imensa de ser uma das maiores civilizações do mundo, se não prefigurar na cabeça o que vai ser, se não inventar o país que há de ser, o país nunca vai dar certo. Nós já temos séculos de erros, de absurdos, porque outros pensaram o país para nós, organizaram contra o povo brasileiro. Então nós temos que tomar, um dia, o poder na mão e ao tomar, nós temos que ter um plano. O que é a utopia? Esta palavra surge com o Brasil, quando o Brasil tinha 16 anos. Em 1516, um velho inglês inspirado por esta coisa inesperada, absurda, que era a quantidade de índios que vivia de forma diferente, totalmente diferente do que se pensava que fossem os antepassados, em vez daquela ideia do antepassado bíblico, que era um ermitão, que comia raiz amarga no deserto, os europeus pensavam que seu antepassado era isso, de repente aquela indiada nua, bonita, o bom selvagem.

O Thomas Morus não viu, mas leu. O Thomas Morus (tomou conhecimento e) escreveu utopia, que significa lugar nenhum. O que é que o Thomas Morus faz? Ele inventa uma vida que não havia, ele inventa uma ilha da perfeição, onde os problemas que ele via na Inglaterra não ocorriam. Então utopia é inventar o país que você quer, por isso é que eu sou utópico, essencialmente utópico.

A utopia tem dois componentes: tem um componente que é satisfazer as necessidades elementares do povo, comer todo dia, se possível 3 vezes, hoje em dia a criança vai à escola, então, atender as necessidades fundamentais, digamos, é a vontade que vem de baixo, é como num órgão, é um som profundo, é o povo que quer essa coisa tão elementar. Não há país no mundo com tanto recurso com tanta gente com fome, então é horrível. A utopia é uma vontade de comer todo dia, ter um emprego, é de poder educar um filho, isso aqui é utopia, isso aqui é o clamor utópico mais alto. Agora, é claro que os pensadores, os políticos, os intelectuais – só que a maior parte se vendeu, está do outro lado – têm que pensar, têm que projetar, por que caminho, de que modo. […] Utopia é, de um lado, um clamor profundo que você tem que atender, que são necessidades que estão aí, porque há muita gente agindo no mercado, deixa gente morrer que não faz mal nenhum se dá lucro… Agora, além do clamor, é essa criatividade, nessa criatividade é que nós, intelectuais, somos chamados a dar um papel, poetas, intelectuais, desenhando a imagem do país que pode ser, o país que deve ser, isto tem que ser feito aqui, porque esse país nosso não vai ser criado automaticamente, isto não é uma Australiazinha não, a Austrália, você pega um pouquinho de europeu, joga lá naquela ilha, eles matam os índios e fazem uma cópia de segunda ordem da Inglaterra, uma Inglaterra de segunda. Aqui é outra coisa. Aqui trata-se de um gênero humano novo, temos que criar uma nova humanidade.

O Brasil tem algumas vantagens sobre os outros, sobre o resto do mundo, que precisam ser exploradas. Nós temos, por exemplo, um povo mestiço, com orgulho da sua mestiçagem. No mundo inteiro a mestiçagem foi combatida, aqui não. Tem um povo que está fundindo uma humanidade mais humana, porque tem mais matrizes humanas incorporadas dentro delas. Um povo construído dentro do trópico como herdeiro da sabedoria da floresta. E você veja as vantagens que temos. O Brasil tem a maior superfície da terra, maior parcela da Terra de terras agriculturáveis bombardeadas pelo sol. Então nós temos um bombardeio energético incrível que no dia que o Brasil tiver juízo e começar a entrar pela biotecnologia, que é o que o mundo hoje está esperando, nós vamos ter em cada área muita produção energética com agricultura para produzir (mais) álcoois do que todo o petróleo que nós tiramos do fundo da terra. E isso dá possibilidades incríveis para o Brasil. É claro que isso não interessa ao fazendeiro de agora que quer seu gadinho agora porque para seu projeto de familiazinha agora, aquilo está bom. (…) Utopia é realizar essa potencialidade.

O socialismo vai acabar no dia que acabar a fome, a miséria, a angústia humana, nesse dia. É claro que isso existe no mundo inteiro. Tem sentido você ser socialista em Nova York. Em Nova York existe uma mancha imensa de pobreza na riqueza. Tem todo o sentido o socialismo. Não tem para quem já pegou o seu, para quem já tirou o seu, para quem tirou sua vantagem e pode até ficar de lado. A preocupação dele é que o mundo não mude para ele não perder o que já tem. Na realidade isso é uma minoria minúscula, muito poderosa, muito perigosa, muito sábia, muito assessorada. Mas o socialismo é a luta contra isso, por um mundo mais habitável para todos os homens. Isso é preciso, sobretudo nesse nosso país.

Minha utopia é singela. Eu quero em tempos previsíveis, se possível que eu possa ver, que nós todos tenhamos coisas bem simples como um emprego para cada pessoa que queira trabalhar, um emprego, o direito sagrado ao emprego para uma pessoa que queira trabalhar, se não está condenado à delinquência. Segundo, que todo mundo coma todo dia. Terceiro, que toda criança tenha uma escola honesta (onde) ela seja ajudada a ser um cidadão do mundo, a ser um cidadão do Brasil. (…) Utopia é um pensamento concreto da coisa que se pode fazer a partir da realidade concreta e que precisa ser transformada.

1995: Diálogos impertinentes: Utopia – Debate entre o escritor e Senador Darcy Ribeiro e o escritor e psicanalista Rubem Alves, promovido pela TV-PUC SP.
O que é utopia? Segundo Darcy, um pré-projeto de sociedade que orienta a ação política

Veja o video completo: https://www.youtube.com/watch?v=nNzvIQmsaN4 – 1.41.57