DARCY POR DARCY

“Lendo-o, ninguém duvida de que o texto, embora escrito em terceira pessoa, seja meu. A prosápia e o estilo são inconfundíveis.”

Darcy Ribeiro, escorpião, gosta de dizer que é mineiro de Montes Claros, a melhor cidade do mundo (a avenida principal tem o nome da mãe dele: Mestra Fininha). Depois de nascer de parto natural (dizem que foi fundado, mas não é verdade), cresceu e fez as bobagens habituais.

Moço já, quis muito ser médico, mas acabou antropólogo. Como tal, passou os dez melhores anos de sua vida (1946-1955) dormindo em rede nas aldeias indígenas da Amazônia e do Brasil Central e assessorando Rondon no Rio de Janeiro. Fundou o então Museu do Índio e o dirigiu alguns anos. Esforçou-se muito, nesta quadra, sem nenhum êxito, para formar antropólogos melhores. Criou para tanto o primeiro curso brasileiro de pós-graduação para antropólogos; o qual, aliás, frutificou prodigiosamente. Depois, seduzido por Anísio Teixeira, virou educador e fez carreira como educador, reitor e, afinal, ministro (1955-1964). Topou aí com Jango, que o desencaminhou para as tentativas de promover a reforma agrária e conter a ganância das multinacionais. Foi um desastre. Exilado, virou latino-americano e passou muitos anos (1964-1975) remendando universidades no Uruguai, na Venezuela, no Peru e até na Argélia. Nesses anos escreveu demasiados livros, que andam sendo editados mundo afora. (…) Estava Darcy nestes trabalhos, quando caiu do cavalo e deixaram que tornasse ao Brasil. Retornou, sempre disposto a cheirar ou feder, conforme o nariz.” (RIBEIRO, Loa, 1991, p. 10 in Testemunho. São Paulo, Editora Siciliano, 2ª ed.)

Dr. Honoris Causa na Sorbonni

Quem sou eu? Às vezes me comparo com as cobras, não por serpentário ou venenoso, mas tão só porque eu e elas mudamos de pele de vez em quando. Usei muitas peles nessa minha vida já longa, e é delas que vou falar. A primeira de minhas peles que vale a pena ser recordada é a do filho da professora primária, Mestra Fininha, de uma cidadezinha do centro do Brasil. Outra saudosa pele minha foi a de etnólogo indigenista. Vestido nela, vivi dez anos nas aldeias indígenas do Pantanal e da Amazônia. Pele que encarnei e encarno ainda, com orgulho, é a de educador, função que exerço há quatro décadas. Essa, de fato, foi minha ocupação principal desde que deixei etnologia de campo. Acabei ministro de educação de meu país e fundador e primeiro reitor da Universidade de Brasília. Outra pele que ostentei e ostento ainda é a de político. Sempre fui, em toda a minha vida adulta, um cidadão ciente de mim mesmo como um ser dotado de direitos e investido de deveres. Com a pele de político militante fui duas vezes ministro de Estado, mas me ocupei fundamentalmente foi na luta por reformas sociais. Fracassando nessa luta pelas reformas, me vi exilado por muitos anos e vivi em diversos países. Minha pele de proscrito foi mais leve do que poderia supor. Meu ofício naqueles anos foi de professor de antropologia e, principalmente, reformador de universidades. Disto vivi. No exílio, devolvido a mim, me fiz romancista, cumprindo uma vocação precoce que me vem da juventude. De volta do exílio, retomei minhas peles todas.  Hoje estou no Brasil lutando pelas minhas velhas causas: salvação dos índios, educação popular, a universidade necessária, o desenvolvimento nacional, a democracia, a liberdade. No plano político, fui eleito vice-governador do Rio de Janeiro e depois senador da República. Essas são as peles que tenho para exibir. (Ribeiro, in Brasil como Problema, Doutor Honoris Causa São Paulo: Editora Siciliano, 1990).