Escritor

O romancista

A forma literária do romance foi adotada por Darcy para sair do esgotamento intelectual em que submergiu durante a elaboração de O processo civilizatório, um dos livros da Série de Antropologia da Civilização, na década de 1960, quando estava no exílio, no Uruguai. De acordo com seu próprio depoimento na introdução da edição comemorativa dos 20 anos de Maíra, publicada em 1996, era uma cura para a incapacidade de produção intelectual mais sistemática. A escrita do romance Maíra surge para ocupar a cabeça com um outro polvo. É curioso que Darcy associasse a produção literária ao descanso do trabalho intelectual. Mas se divertia deixando a imaginação fluir em golfadas no primeiro caso, no segundo, ao contrário, conduzia a produção a partir de uma programação elaborada intelectualmente.

Sou mesmo é escritor, cobaia a ser escrutinado. O que posso dar são testemunhos como este. Duvidosos.

Darcy Ribeiro, Maíra, um romance dos índios e da Amazônia. 1996: 23

Maíra, sua obra literária mais conhecida, não foi o primeiro romance que escreveu. Ainda na juventude, pretendia ser escritor e poeta. Na década de 1940, aos vinte anos, em Minas Gerais, escreveu seu primeiro romance, intitulado Lapa Grande, que submeteu a um concurso da Editora José Olympio e foi rejeitado, ficando inédito: “Felizmente inédito, e aqui proíbo terminantemente a qualquer aventureiro publicá-lo, em qualquer tempo” (RIBEIRO, 1997:95).

Publicou outros três romances – O Mulo, Utopia Selvagem e Migo – e, sem vergonha, aventurou-se até na poesia ao final. Se bem que esse gênero já estivesse presente nos seus escritos, como no romance Migo, publicado em 1988, que remete à mineiridade.

Pouco antes de morrer, Darcy estava dedicado a um novo romance. Me disse que era sobre um michê em Copacabana. Neste caso, ele não ditava nada, estava no casulo, utilizando apenas a caneta e um caderno, rascunhando sua nova criação. Esse romance nunca foi concluído e o manuscrito faz parte do acervo da Fundação Darcy Ribeiro.

Os poemas, entretanto, escritos já com conhecimento do câncer terminal, foram publicados postumamente no livro Eros e Tanatos. Todos escritos à mão, geralmente à noite, foram entregues para digitação e as páginas impressas ficavam em sua mesa de centro, na sala. Eram revisados pelo autor com frequência. Eventualmente acrescentava mais algum. Submeteu à análise crítica de amigos e não se decidiu pela publicação em vida. Foram publicados postumamente, pela Fundação Darcy Ribeiro, com posfácio do poeta e escritor Moacyr Felix.

Também se aventurou na literatura infanto-juvenil com dois livros no período de seu mandato senatorial. O primeiro, publicado em 1995, é um conjunto de ensaios curiosos, irônicos e críticos, sobre diversos assuntos: os índios, os números, as pulgas, o fim do mundo, o Brasil… Não por acaso, o título deste livro é Noções de coisas, parodiando ironicamente Lições de Coisas de Rui Barbosa, que ele chamou de “o maior coco da Bahia”. Darcy não teve filhos e dizia que não teve que domesticar ninguém. Mas gostava de crianças e era completamente “sem noção” com elas. Numa das vezes em que esteve com meu filho, que tinha entre oito e nove anos na época, cantou uma música cheia de termos escatológicos pedindo que o menino repetisse com ele.

O outro livro eram duas deliciosas e irreverentes histórias infantis sobre uma comunidade de gatos, as Histórias Gáticas, ilustradas lindamente por Patrícia Gwinner. Era uma brincadeira feliz, nos divertíamos muito. Durante muito tempo, Patrícia deixava desenhos e mais desenhos para Darcy na portaria do prédio, remetendo ao enredo da gataria. Todos guardados cuidadosamente. O livro foi finalmente publicado, postumamente, pela FTD, em 2002.

Este texto foi escrito por Gisele Moreira e publicado numa edição especial sobre Darcy Ribeiro na Revista Interinstitucional Artes de Educar, da UERJ, em 2017, por ocasião dos 20 anos de seu falecimento. No Relato para lembrar Darcy Ribeiro, Gisele iniciou o texto com sua apresentação:

“Fui assessora técnica do professor Darcy Ribeiro durante seis anos, entre 1991 e sua morte em fevereiro de 1997. Durante aqueles anos me dediquei a colaborar na elaboração, organização e edição de seus textos, ensaios e livros.”

O texto completo está no link https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/riae/article/view/31718/22448